Eu fui sendo levada pelo rio, arrastada pela força de suas águas, eu vi peixes, até que eu me acomodei num depósito aluvial, numa curva de rio, e lá eu fiquei confinada, entre outros sedimentos, porque a correnteza já não me levava. Não era isso que eu tinha nos meus planos. Mas isso foi antes, muito antes.
E um dia ela quis fazer para você um poema, como um daqueles de Vinícius de Moraes ou de Chico Buarque, mas ela não era poeta. E aquelas suas poesias lhe pareciam muito estranhas, como vórtices, com um gargalo muito estreito, quase hermético, na sua capacidade de absorver silêncios, mesmo em meio a tantas palavras. Ela achava aquelas tuas poesias até bonitinhas, só que elas não lhe diziam nada. Mesmo assim, ela queria fazer um poema para você.
O mundo dá voltas. O tempo passou e um dia eu fui recolhida. Fizeram então um bloco úmido de mim, in natura, como tantos outros blocos, dispostos numa prateleira. Era então essa a minha sina. Uma espécie de corpo amorfo, despido de qualquer significado senão minha própria matéria, sem um espírito a me animar. E não era isso que eu tinha nos meus planos.
Olha cara, eu te amo, mas o plantio nesse terreno tem pouca chance de ser fértil, porque o meu coração já derramou lágrimas demais. E eu preciso de atenção, de segurança, de carinho; assim como aqueles que eu dispenso para com as plantas do meu jardim. E eu sinceramente não sei se você é capaz disso. Eu preciso que você me prove, mas as provas podem doer em você muito mais do que você é capaz de suportar. E será então, que valerá a pena para você? Ou você se perderá no caminho, assim como eu certa vez me perdi? Eu quero você caminhando ao meu lado, mas você precisará entender da minha dor, aceitar-me como sou e, ainda assim, achar isso bom. Olha cara, eu te amo, mas seja o que Deus quiser. Era essa a poesia que ela queria escrever. Mas isso não era poesia. E ela não a escreveu.
Eu sei disso porque um dia ela me tomou em suas mãos e me modelou carinhosamente, imbuindo-me de um espírito, de um significado enquanto me acariciava, definindo em mim curvas doces, superfícies suaves, com as suas mãos molhadas na água, para o acabamento final. Depois, com um palito de dentes, ela tatuou signos em ambos as superfícies abaloadas com a sua mão canhota. Estes signos que eu não sei dispor em palavras. Do que eu já pude descrever, dá pra você imaginar que eu não fui alfabetizada, mas eu posso senti-los, porque eles já fazem parte de mim.
E, sem nenhum aviso, ela me tocou no fogo alto do forno, me deixando lá por mais de três horas! Depois pincelou a superfície cuidadosamente com verniz acrílico, revestindo-me de carinho, de esperança. Para que eu renascesse da argila, na forma de um coração.
Sempre que eu penso nisso, em vir a ser o que eu sempre quis, agradeço a ela por ter tido a ideia de acreditar na minha matéria simples, no barro, como meio de expressão mais sublime. E esta história eu escrevi para você, que cuida de mim com zelo, mesmo depois de tanto tempo.
Olha cara, um dia o mundo vai acabar. Um asteroide gigante vai se chocar com a Terra e você sabe disso, só finge que não sabe. Isso já aconteceu antes, bem antes. Esse seu planetinha comparado ao céu, é como um grão de caulinita, de ilita, ou de vermiculita, sendo levado através do leito de um rio pelo poderoso fluxo hidrodinâmico, um único grão, como um dia eu fui. Mas enquanto isso não acontece, enquanto há vida, cuida de mim, que eu cuido de você. Isso ela não disse, não escreveu, sou eu que estou te dizendo.
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