Por Ronie Von Martins
Percebidos pela casa. Ali estão os dois, um ao lado do outro, corpos estendidos.
“Entram e saem, fazem tudo sobre meus olhos, e de suas vidas tudo eu sei, pois sou o corpo unitário, sou o uno dessas duas carnes que se separam, sou eu a criatura indefinida que os vigio, que os abrigo e mais nada posso fazer, percebo seu mundo dia após dias, seus humores, suas irredutíveis certezas, seus ataques de ciúmes e suas traições diárias. Em minhas entranhas, nos vazios do meu corpo eles convivem, criaturas estranhas e sozinhas. Uma se orienta pela beleza do corpo e o medo de perder essa orientação, a outra frustrada pelos golpes do tempo e pelo desinteresse da outra, se volta para uma ruminação mesquinha e furiosa que não se completa, que não se corporifica, não há atitude, só em sonhos, pesadelos. Ela, faminta pela carne, idólatra do corpo e do que este pode lhe oferecer, se percebe escrava, enclausurada na sombra impotente do marido, ele, furioso e fraco, respira os vestígios da ilusão de ainda possuí-la. Seus corpos estão juntos, mas essa união os mata. Mata de tal forma imperceptível, que não percebem. Ou se percebem nada conseguem fazer para modificar a situação. E eu os observo, observo de minhas paredes frias e amarelas, cor escolhida por ambos, o amarelo do sol que já não os ilumina. Seus olhos já não se procuram, suas mãos não se agarram, já não há sussurros nem gemidos em suas vidas. E o silêncio é mais real do que minhas paredes. O silêncio dos corpos é a verdadeira casa, este silêncio que os faz olharem para os lados quando um passa pelo outro, quando a televisão dialoga sozinha na sala, entre os dois e suas mortes anunciadas. E o que posso fazer? Observar seus rostos sofridos, contraindo-se com o peso de suas dúvidas e de suas escolhas. Mergulhar através de suas memórias, de seus sonhos e resgatar todas as imagens acontecidas ou não em minhas paredes. Recordar o sonho que ele teve, e vê-la nua, o pescoço entre as mãos dele que gargalha e a sufoca gritando que é homem. Ver como ela elabora um plano incrível para um amante qualquer acabar com a vida dele à noite enquanto o sono é ainda mais pesado devido aos calmantes que pusera na bebida. Eis minha participação nessa fracassada relação, sou os olhos fantasmagóricos do nada, essa presença indefinida que paira sobre os corpos, sobre os atos, sobre as vidas todas. Sou o túmulo de madeira, que nem Ahab percebeu. E eu os engulo todos, os devoro. Devoro toda a vida e os transformo em caixas, caixões. E no silêncio da madrugada eu velo pela morte aparente de toda a criatura humana.”
*Este texto é parte de um livro de minha autoria intitulado “ Diálogos Inexistentes”, ainda em elaboração.