Por Ronie Von Martins
Já não abraçava ninguém. Talvez o tempo. Sim. Com certeza o tempo agora lhe abraçava. Forte. Tão forte que sentia as estruturas do seu corpo fraquejar. Mas não reclamava. Sua resposta era sua insistência. Inquebrantável insistência. Resistir.
Nas espirais em que o tempo fazia suas memórias girarem, algumas lembranças se desgarravam e saltavam na parede. Imagens trans-temporais. Presente e passado, mesclados de forma indefinida.
Dos sonhos. Dos sonos confortáveis. Em que os corpos buscavam os aconchegos de seus sussurros mágicos, de suas cantigas irreais que levava-os para muito além do corpo. Era poderoso e venerado. E tinha seu império na parte mais nobre do reino. E seu poder era ilimitado.
Sobre as disputas de poder. Nos problemas mais graves, os corpos se jogavam para trás, afundavam-se no seu mundo. E com as palavras indizíveis, sussurrava respostas, propunha acordos, fazia rir. Era.
Braços fortes, suportava todos os pesos, todos os tamanhos, todas as alegrias e dores. E era mágico. Sim. Era mágico. Pois fazia as janelas abrirem ou fecharem, acendia quase sempre um portal vibrante e sonoro que hipnotizava todos. E sorria. Era ele.
Mas não há perenidade. Ilusão do eterno.
Primeiro, em decorrência de tratados políticos, condições econômicas e estéticas, fora obrigado, para sua própria segurança a habitar outros espaços. Não era de todo ruim. Agora recebia e tinha de dar palpites em relacionamentos juvenis. Aparar lágrimas infantes perdidas em delírios amorosos. Consolar a imaturidade e acalentar estranhos animais coloridos de pelúcia. Também de bom grado, recolhia todas as roupas e todos os livros. Montanha de coisas caóticas. Mas era forte. E sustentava ainda sorrindo todo o caos daquele estranho ambiente. Nas madrugadas, observando os corpos dormirem, abria sobre seu corpo algum livro ali deixado. Alice no país das maravilhas, o Pequeno Príncipe. Revistas de moda? Signo? Gibi. Às vezes ainda ouvia lá de onde aprendera a estar, os murmúrios do outro. Mais jovem e arrogante que agora dominava. E no sem palavras de seu diálogo, dizia para ser mais generoso menos orgulhoso. A juventude traz na força toda a sua consciência…
Então aconteceu. Enquanto os corpos se ausentavam. O portal luminoso, revoltado com sua subserviência, em ígneo discurso, ateou luz causticante ao lugar. E das distâncias da dor todos podiam assistir a consumação da matéria em brilho e calor intenso.
Quando tudo acabou. Só ele ainda resistia. Corpo ardido, pele em estado deplorável, chamuscado, sujo, mas vivo. Era mágico.
Vários corpos vieram e entre gritos, lágrimas e esforço. Água e suor… Restou ele.
Todos foram.
Era a única casa da rua. Hoje é apenas um labirinto de paredes caídas e destruídas.
Porém ele é mágico. E para aqueles que acreditam em mágica e tiverem coragem suficiente. Entrem naquela rua, depois das dez horas da noite, nas pegadas do silêncio, andem até ele. E o verão, em pedaços sim, mas forte o suficiente para acalentar o sono do pequeno menino e seu cão pulguento. Aproximem-se e ouvirão no ar uma voz que é além da voz sussurrar: “Era uma vez…”