Por Ronie Von Martins
De como se destrói uma estrutura
Ou… Alice de pedra na mão.
Cabelos loiros e de nome Alice. Baixinha e simpática. Sorriso de contar histórias. Fadas e essas coisas. Bela. Sorridente. O pai largou a mão. Mãozinha açucarada da fazer carinho e apontar pequenas e fúteis necessidades. Agachou-se a menina. A pedra chamava. Redonda e pesada. Na palma cabia, se aconchegava. Pedra e mão. Mão e pedra. E o pai distante. Negócios, contas e mulheres, pois era desses que o corpo ardia por qualquer mulher. Fraco. Da carne. Enquanto o corpo permanecia na tolerância e na possibilidade de um provável “bom-comportamento”, os olhos e a mente se esbaldavam na luxúria que só a imaginação é capaz. Mas ela era forte. Ela e a pedra. E do outro lado a vidraça e ela e o pai e a pedra. E o mundo que passava atrás, no meio e na frente. Quebrou.
Foi. Pelo ar. E com um “ufa!”. Sim, com ponto de exclamativo esforço de menina que arremessa pedra e violência. Desabou a vidraça. Nua a janela e a possibilidade dos traspassamentos. E o pai abriu a boca em espanto que de dentro advém. Espanto. Boquiaberta a janela pelada em vidro que não mais é. Atravessamento. A menina sorri. Sorriso de boca que não se abre em dentes brancos, mas que pelos olhos. Olhos que sorriem o não saber o que se faz. Mas que é bom. Fazer. Em seguida todos os verbos e discursos estariam em combate. Palavras emaranhadas em ríspidas acusações e encabuladas desculpas. Discurso que se desprende, afasta a menina e a outra pedra. As ruas não deveriam ter pedras para as meninas de sorrisos nos olhos. Esta possuía. Possuía todos os desejos selvagens das meninas de cinco anos.
E agora foi o carro. Alvejado. Fera abatida, assustado gemendo, bufando fumaça e impropérios. Mais gente, mais verbos, exclamações que cravavam na sensatez de qualquer decisão. Aturdido, ofendido, humilhado. O pai apanhou outra pedra, grande. Paralelepípedo. Quadrado. Ao ar e aos gritos. Vôo. Cubo voador. Nave espacial, peso puxado. Torpedo que se volta. Revolta. O povo se afasta. E o carro azul parado na rua recebe nas costas o peso. A pedra. E grita. E o povo grita; êxtase.
A menina já está com outra pedra, e as vidraças vão caindo. Logo um senhor velho, carcomido pelo tempo para em frente à menina. Olhos severos. Ela sorri e apanha a pedra que ele oferece. É a destruição.
As pessoas enlouquecidas arrancam as pedras da rua e jogam nas casas, nas lojas nos carros. A polícia chega e é apedrejada. Os políticos chegam e são apedrejados. E abandonam seus postos cargos e carros e apedrejam. Todos de pedras na mão. Mas não há sangue, não há mortes. As pedras procuram o que não é vida. E as mulheres choram e os homens choram. E quebram tudo. E a epidemia toma conta do universo. Pelas ruas, pelas cidades, pelos estados, pelos países. As cidades morrem na estrutura. Na forma e conteúdo.
Das nossas pequenas maldades
Sim, tudo vidro e cimento. Branca de Neve encaixotada em túmulo asséptico, sem beijos e sem príncipes. O mundo engaiolado em seu medo. Seu medo em cimento e vidro em fantástico monumento ao final de tudo.
Não há como negar. É claro e evidente. Não o fim do mundo como os profetas de esquina proclamam por aí, mas o fim, um fim entediante, que vem se arrastando e agarrado ao nosso corpo, aos nossos desejos. Uma coisa viscosa que vem subindo inalteradamente pelas nossas pernas, devorando caminhos, passos e vontades, prazeres e certezas. Uma massa cinzenta como o cimento, um túmulo macilento que procura seus mortos que ainda não perceberam a própria morte.
Com certeza isso é um túmulo, um túmulo que se alastra sobre seus defuntos-cidadãos, tudo cimento e vidro. O vidro é para nos confundir, para ludibriar nossos sentidos, fazer com que não percebamos que já fomos enterrados, que ainda podemos voltar. Uma janela para o outro lado. Mas uma janela que não abre nem pode ser quebrada. Oferece-nos a imagem do que está fora. A imagem mesma daquilo que não somos. Os olhos, minha avó dizia, são as janelas da alma. O vidro não tem alma.
E ali vai, para não desmentir minha teoria de fim de dia um verdadeiro espécime de morto-vivo. Analisemos a estranha criatura, o elo perdido entre o mundo dos que vivem e daqueles que já não sabem que não vivem:
Magro, quase esquelético em seu suor provavelmente fétido dentro daquele boné vermelho horrível, passos rápidos e firmes, mesmo que seus olhos esbugalhados pareçam pedir ajuda. O movimento do corpo, um ombro depois o outro lembra um símio. O elo perdido, eu falei. Em seu vocabulário não deve existir grande diversidade de vocábulos, em compensação deve estar por dentro de um milhão de gírias. A gíria prolifera como os vírus de computador, você mata uma e surgem mais quatro. Mas vejam só, é quase assustador o suor que brota das costas do coitado, com certeza muitos problemas o afligem. Graves problemas, pois o grau de concentração em que está é algo notável. Apenas olhares furtivos, desconfiados, maldosos. Eu falei maldoso?
Sim, um olhar maldoso, enraivecido. Seria isso sinal de alguma coisa que eu devesse conhecer, descobrir? Afinal não somos todos nós tão maus quanto o próprio satanás? Não somos todos nós filhos da dicotomia bem e mau? Nosso quinhão de maldade existe, semente daninha reservada para uma germinação futura, um momento negro onde deixaremos que a erva daninha de nossas maldades sufoque nossa vítima, e então faremos cara de choro e molharemos o caixão de seu fracasso com as lágrimas da nossa perfídia. Um caixão de cimento e vidro.
Pode parecer terrível, mas algo me diz que este ELO PERDIDO estaria melhor no caixão da Branca de Neve. Sem príncipes e sem beijos.
Cruel. A minha erva do mal está bem adubada.
Ronie Von Rosa Martins