Em casa. A porta aberta. Entraram os dois. Sorrisos. Ela magra-alta, olhos de comer os outros, vivos, inteiros. Tudo. Ele de mortos olhos. Tristes. Fracos. Mas aperto forte. de mão. Contenda. Disputa. Confronto. O olho morto no meu olho. “desiste?” Eu desisto, desisti antes de começar. Minha mão amassada lateja, a vontade é de correr aquele imbecil, chutar-lhe a bunda pra fora. Do mundo. Olhos de peixe-defunto-morto. Ela linda e falsa, brilhante e brilhosa. Dentes brancos de iluminar-ofuscar. Com certeza ela traia. Sim, não havia dúvidas. E ele sabia. Era esse o motivo de tão forte aperto, de tão mortos olhos. Pena. Não… não tenho pena. Ela abraça meu corpo. Quente. Palpitante, fico imaginando o que há por baixo. Intimas. As roupas. Cores. As cores são essenciais para a vida. E para o sexo. Desvio o pensamento. Fixo os olhos nos olhos dele. Olhos mortos de gado que vai para o matadouro. Ele sorri. Entram. Invadem minha casa. meu espaço. Devassam meu corpo outro, meu domínio e território. Mas foi o combinado. Encontro. Sair. Beber. Havia a insistência. Mais dela que dele. Não éramos grandes amigos. Meros. Amigos. Os grandes ficavam na memória, protegidos pelo tempo e o saudosismo, longe dos espinhos da relaidade, do cheiro de loção horrível e dos olhos mortos.
Sentados. Os três. Não somos jovens. Nem velhos. Só os olhos deles. Envelhecidos pelos dissabores das relações sociais e por que não carnais? E carne era ela. Pura. Carne em estado primitivo. Ela cruza as pernas e meus olhos tentam fugir ao que não é mostrado mas sugerido, ele sorri, levanta e fala em bebida. Levanto-me. Do bar trago uma garrafa de vinho, taças. E logo a garrafa esta vazia e os rostos mais vermelhos, rostos-tintos. Dentes mais abertos, sorrisos mais eufóricos, piadas mais sacanas, corpos mais juntos. Eu me levanto. A tentação. Ele sabe. Ele sabe que não consigo desviar os olhos das pernas da mulher. Ela também sabe e sorri. Oferece, mostra. Carne. Ele sorri. Mas não é um sorriso confiável, sorri para não fazer outra coisa, sorri para não me esbofetear, sorri para não me chutar e ofender. Estou confuso, constrangido. Nem somos amigos. Falei que não gostava de sair. Falei que não tinha namorada, amante. Falei que gostava de ler e navegar na net, que gostava da solidão e de falar com as paredes. Falei para ele. Ele trabalha comigo. Conversa de bar, café, entre os outros. Aquelas conversas de merda, quando começam a indagar sobre a vida. Disse que não “tava” a fim, que não tinha importância. Inclusive falei de bordéis putas e essas coisas do comércio. Dos prazeres pagos a que nos condicionamos, e que vivia bem. Foi então que ele insistiu. Combinou, armou, decidiu. Viriam à minha casa. Ele e a mulher. Sairíamos juntos, ela me apresentaria uma amiga. Um encontro. Diversão, festa… e agora eu estava aqui, com as pernas da mulher cravadas nos meus olhos, o decote e o sorriso. E ele desconfiado, irritado, taça de vinho na mão, sorriso estranho. Um gole. E a gota rebelde. Salto para fora, queda. Precipitada para fora da boca. Pingo de vinho. Abismo. O pingo no ato de despencar queixo abaixo. Repulsivo, nojento. Quero dar uma porrada nesse cara. Nem somos amigos. Queria que fossem embora. Abandonassem o espaço da minha futilidade, da minha artificialidade. Mas não, eles queriam mais. Queriam desestabilizar a imobilidade segura da minha estratégia. De vida. Meu projeto de invisibilidade. Queriam a exposição da ferida, queriam … o vinho e uma música. “Bota uma musiquinha, aí.” Era ela, voz dengosa, provocativa, imoral, sediciosa. Levanto e ela levanta. Aproximação. Os olhos dele estão fixos. Na taça de vinho. Já outra garrafa. Ele bebe, afoga-se. Seus olhos mortos bóiam sofredores no vinho e na tinta da merda de vida que leva. O rosto dela está próximo, sinto a respiração quente no pescoço, temo em voltar o meu. Encontrar a boca e a possibilidade do beijo, a dentada do sexo. A devoração, a penetração da carne. A transgressão, a violação. Tremo. Resisto. Ela sabe o efeito que me causa. Gosta. Ele não. Está em pé. Abraça a mulher pelas costas. Beija o pescoço. Ela sorri e larga a cabeça para trás. Os cabelos fazem um movimento já estudado e praticado várias vezes. Artificial. Ritual. Ele aperta o corpo no corpo dela. Quero matar. Bebo. Ainda mais. Bebo. A voz Ramil preenche o lugar. Ela não gosta. Eu gosto. “Não tem outra coisa, não?” “Mais agitadinho?” Não. Nada mais “agitadinho”, o que ela pretendia? Sento-me. A taça está pela metade. Ela se desvencilha do marido. Na minha estante perambula os olhos de ler “Júlia e Sabrina” pelos meus livros. Para. “A pornografia”. Retira o livro. Sorri. Olhos maliciosos. A burra. Não sabe ela que o livro é do Gombrowicz e que Gombrovicz é um grande escritor polonês e que o livro é metafísico e que trata de questões cruciais como juventude e velhice e que trata do ser humano e do que esse ser humano pensa e faz além e aquém da máscara que usa. Mas ela continua sorrindo, e ele está zombando. E eu quero chutar a bunda dos dois para fora. Não, quero comer a mulher. Devorá-la toda. Devassar o corpo, consumir toda sua burrice em sexo grotesco e animal. Ela se aproxima. Parece ter lido meus olhos. O corpo ondulante, está dançando. Provocando. È um grande escritor. Apanho o livro da mão dela e o coloco no lugar. Ele da uma gargalhada. “Não fica encabulado não, um homem sozinho como você… sorri…” O que ele quis dizer? Meus olhos cravam nos dele. Imbecil. Em tom alto. Voz. Audível. Firme. Ele estanca. A mulher tomba no sofá em gargalhada desatada. Bêbada. “Não é que ele te conhece, amor?” e continua rindo. Ele avança, olhos tingidos de fúria e de vinho, eu recuo. Me estrepei, penso. Ele me abraça e chora. Soluça. Corno, penso. Ele senta. Bebe. A mulher levanta, caminha até ele e o esbofeteia. Plaft! O rosto avermelhado. A mão doída. São doidos. Malucos. Medo. Alguma coisa começa a tilintar em meu cérebro. Dor. Dor de cabeça. “Corno!” ela grita pra ele. Ele chora. Soluça. Tento acalmar os ânimos, quem sabe outro dia, quem sabe vamos todos dormir, cada um na sua casa… Ela está me olhando. A mão rápida como uma cobra apanha a gola da minha camisa. Sou puxado. Minha boca próxima à dela. Os olhos de fera. De fúria. A língua quente que me invade. Sem ação. Ele baixa a cabeça. Soluça. Treme no sofá. Olhos-mortos. Ela abraça. E sinto pânico… e desejo. O beijo. Medo. Afasto. Fujo. Balbucio uma palavra, balbucio outra. As palavras foram deformadas, palavra-balbúcio, palavra-murmúrio-espanto. A des-palavra. O desconforto. Ela provoca, olhos de sexo. Olhos devassos. Olhos de puta. “Ele é um merda.” Aponta para o marido, “um merda!”
Ele está levantando. “Vou embora.” Diz. Então é isso? Então era isso? Era assim que resolviam os problemas? Tinha que alimentar a fome da mulher. Dar comida para a fera.
Eu era a comida. Eu era o objeto. O alimento. Tudo arranjado. Tudo decidido. Precisava de corpos. Vampira. Monstro insaciável. Sugara a vitalidade do marido. Toda. Mas ainda o prendia não se sabe como. Grotescos. “Não.” Me ouço dizer. Não pode ser assim… Ele me agarra furioso pela gola da camisa, bafo de morte na boca: “É assim, tem que ser assim.” Eu o empurro. Esmurro. O nariz dele rebenta. Sangue no chão. Chuto com raiva a cabeça. Ele se encolhe, chora. O infeliz sempre chora. Sempre soluça. A crueldade. O inusitado da vida. Essas coisas que nos surpreendem sempre. Sexo. Carne. No chão possuo a mulher. Com raiva, com maldade. Ela grita, chora. De prazer. Sei lá… mas faço. Ele chora. Depois se abraçam. Choram. Soluçam. E vão embora.
Minha solidão é um ponto de interrogação.
Desligo o som. O silêncio. Desligo as luzes. A escuridão. Me sinto um demônio…ou um objeto?
Da janela vejo-os na rua. Abraçados. Aconchegados. Ela beija o rosto dele. Ele a beija carinhosamente. Um táxi. Uma rua. Uma noite. Uma rua vazia. Uma janela. Um rosto. Um reflexo. Um apartamento sem luz.
Sento na mesa da sala. Ligo o micro. E escrevo. Primeiro a palavra “casa”, logo acrescento antes desta a preposição “em”… a porta aberta.
Ronie Von Rosa Martins