Arte Literatura Ronie Von R. Martins

Fragmentos de Ida

Largou a pasta e os diários de aula. Nomes. Em lista. Filas. Notas. Médias. Conceitos. Preceitos. Receitas. As mãos no rosto. A lágrima. Mais de uma.
Sentar na poltrona. A vida. O relógio. Ponteiro ordenando o banho e a agilidade. O ônibus. A outra escola. Os outros alunos. Mais números. Notas e conceitos. Mais café ruim. Mais chá frio. Mais conversa fiada e ridícula. Lágrima. Chá salgado…
A outra pasta a observava. Chegava em casa, comia algo, tomava o banho. Pegava a outra pasta e corria para a parada do ônibus. Sacudia até a outra escola.
Abria a porta. “boa noite.” E morria em giz e túmulo. Velha. Quando se olhava no espelho percebia as linhas que a levariam a um outro corpo, a um outro rosto…
No banho sentada ao chão gelado desabou. O mundo em água. Líquido, escorreu pela sua carne. Encharcando-o de cobrança e culpa, de medo e frustração. Afogada.
Já no ônibus olhos fixos de não ver nada. Deixou de ver o menino que sentou. Mais uma criança. Tantas.
“Fugi de casa.” Disse o garoto, sorriso que mais perguntava que dizia. Rosto que exigia resposta. Ela fez que não. Ouvir custava. O mundo era cruel. O mundo.
“Ele me dava.” Continuou o menino. “Dava na minha mãe também.” Os olhos dela caíram sobre o rosto estranhamente sorridente do garoto. Olhos pequenos, boca grande, dentes levemente separados. Cabelo raspado. “Quantos anos você tem?” Não havia carinho na pergunta, não havia emoção. Uma tentativa de mostrar interesse, de aguçar alguma curiosidade. “Doze.”
“Você fugiu mesmo?”
“Fugi.”
O silêncio das rodas do ônibus e da conversa despretensiosa das bocas outras do ônibus.
O olhar da mulher buscava o distante. Outro mundo. Outra página que pudesse reescrever sua vida.
“Tô com fome.” O garoto continuava sorrindo.
Ela continuava em silêncio. O ônibus continuava indo. Todos continuavam.
“Não como desde hoje de manhã.”
“Não tenho nada aqui.” Foi a resposta.
“Eu sei.” Ele respondeu. “É que falando parece que passa.”
“A fome?”
“Tudo.” Respondeu sério o menino. “Quando eu falo parece que as coisas são diferentes.”
“Quer um lanche?”
“Quero.”
Sentados em uma mesa na frente de um barzinho ela olhava a fome que devorava a recheada.
“Era o teu pai?”
“Era.”
“Tu não ama ele.”
Do pão, os olhos do garoto iluminaram o rosto dela. “Não sei. Tenho saudades dos dias bons…”
“E tua mãe.”
“Ela ama.”
“Quem… você?”
“Ama mais ele. Tenho mais dois irmão pequenos.”
“Tua mãe tem telefone?”
O menino levantou-se. Bebeu o refrigerante que sobrara no copo, agradeceu sorrindo.
“Tu é gente boa ‘tia’, mas não vai dar não…”
“Espera a gente pode…”
E agora ele era só uma lembrança. Correndo ao entardecer.
Naquele dia não deu aula. Alegou problemas pessoais e foi para casa.
Enquanto a água escorria pelo corpo ela lembrava. A água era para ajudar a não. Lembrar custava. O mundo estava sempre cobrando alguma coisa. Taxas e mais taxas. E ela estava farta… mas estava vazia. Oca. Caverna sem imagens nem esperanças. Já não havia interpretações… o mundo passava, devorava sua carne e vontade e tudo acabava. Sempre o retorno ao mesmo. E o mesmo era enfadonho e triste. Muito triste. Seu corpo triste escorria pelo ralo do banheiro, fluidez assustadora do corpo. Morte do corpo? Desorganização do corpo?
Então olhou fixamente para o ralo. Para a água. Realmente fluxo. Forte. Frio. Movimento. Contato. Risco. Desestabilização do instituído. Corpo que se aprende com as estrias da vida. Que resiste, reconhece, circula, dobra, estica, espedaça… corpo máquina de guerra. Corpo grito que resiste ao silêncio do quarto e ao abraço da poltrona.
A vida cobra… dane-se. Dane-se as cobranças da vida. Aliás. Pensava. Não era a vida que cobrava nada. Era outra coisa. A vida era força e combate. Potência.

O ônibus já ia. Ela o observava. Agora era hoje. No ontem o menino entrara no ônibus. Mesma parada. Teria voltado para a proximidade da casa. Dos conhecidos? Quem era?
O coração tinha agora outro ritmo. Lembrava de Nietzche, sentia-se como o pastor que engasgado com a cobra negra, em ato de desespero arranca a cabeça da serpente com os dentes e cospe longe. Cuspir a negação da vida. Artaud cuspindo no senso comum. Buraco mágico dos tarahumaras. Saliva mágica. Magia. Vida outra que fazia o corpo tremer como que embalada por ritual ancestral de passagem.
“Um menino assim…” ela tentava descrever a criança. Palavra-formão. Esculpindo o rosto, os olhos, os dentes separados do guri.
“Já… já… sim. Vi esse guri por aqui. Poucas vezes. Mas não sei te dizer…” e ela já estava saindo do bar. Dos pastéis devorados em bocas cansadas. Das cervejas geladas e dos olhos avermelhados. Das conversas fiadas. Palavras tecidas no comum de todos os sensos e acrescidas de álcool e séculuos de tradições duvidosas.
“Gostosa… “ parece ter escutado. Surpreendida voltou-se. O inusitado. A palavra produzindo o redemoinho, a reviravolta. Aproximou-se do homem. Séria. Olhos firmes. Ele encabulado, sem jeito, ligeiramente corado. Não era jovem. Pela aliança que amarrava o dedo que amarrava o copo, devia ser casado. A instituição. Ele engoliu um gole. Os homens do bar estavam em silêncio, tensos. Sorridentes e maliciosos, mas tensos.
Quando saiu do bar pensava no que fizera. Sorria. Sorria de um jeito estranho. Beijara o homem. Um estranho. Agarrara o rosto do homem e o beijára. Beijo-fogo-fúria-fome. Sentia a vida do homem em seu lábio, em seu corpo. O contato. Tato. O fato.
No bar o homem permanecia em silêncio. Estarrecido. Vencido?

Um corpo que se conectava furiosamente, arriscava-se a devoração da rua. Mastigação.
“Fugir de casa.” Ela pensava. Desterritorializar-se. Permitir-se o risco. Mas ele era pequeno. Frágil. Sorridente. Criança.
O risco era grande. Demais. E havia o contato. Ele fizera o movimento de aproximação, avizinhamento. Olho através do olho. Sorriso que emoldura uma possível esperança. Apelo? Não. Não era um apelo. Ou seria? Os carros deslizavam suas luzes e rodas e latas e borrachas e odores e vestígios e corpos presos enlatados e sorrisos mortos e olhares idos. Vindo sempre e indo infinitamente. Ruas vivas. A tarde ia-se. A noite. Onde iria um menino de 12 anos sozinho? Estaria com medo. Estaria sozinho?

A escolha. O surpreendente. Buscar o desconhecido através da impossibilidade da razão. Instinto. Coisas do fluxo, da liquidez da rua. O cão. Ela parou. Do outro lado da rua o cão farejava. Comida? Procurava comida? Indiferença ao movimento exterior. O mundo era ele. E seu faro. Grande nariz a traduzir um mundo outro. Um mundo feito para responder às suas necessidades. Formas, tamanhos, gostos, texturas. Tudo tragado pelas grandes narinas. Um cão. E seu caminho. Trajeto. Peregrinação pelos mais inusitados espaços. Corpo animal redescobrindo diariamente todas as dobras do estrato social. Cartografia animal.
Atravessou a rua. Locomover-se através da cartografia animal, linhas de composição, avizinhamento com o espaço e movimento do cão. Um devir-animal. Devir-cachorro.
Farejar. Ele percebeu que estava sendo seguido. As orelhas ergueram-se. Captar o som. Sorver todos os sons. Perceber. Os olhos. “O que ele está pensando?” Então a corrida. Músculos em movimento. Adrenalina. A distância das coisas. A efemeridade das coisas que passavam. Só o corpo em movimento. Projeção perigosa. Avanço vertiginoso. Loucura. E enquanto corria atrás do animal parou de pensar. Espaço vazio. Nada. Só a dor dos músculos se libertando de uma letargia secular. Suor. Lágrima? Lá estava ele. Já não mais no centro, mas em uma rua qualquer, olhando. Olhando dentro dela. Tentando decifrá-la, entendê-la. Ela arfando. O medo agora alertando-a, avisando-a. Calmamente o animal aproximou-se de algumas caixas amontoadas sob uma marquise. Entrou no escuro das caixas, desapareceu. Ela parada, observando. Esperando. Então ele saiu. O menino. Outro. Metamorfose. Transmutação. Magia. Bruxaria. Os olhos dele questionadores. A pergunta feita no olho. Pelo brilho. Ela estava exausta. “Procuro um menino.” O menino-cão sorriu. “Não estou precisando de mãe não… dona…” “Não é você…” Ele sorriu novamente: “Eu sei dona… nunca sou eu…” “E o cão…?” “O Medonho?” “É.” “Tá dormindo.” “Quem é?” “Não sei… tem doze anos…” “Todos temos doze dona…” Estava em pé na frente dela. Olhar firme. Olhos pequenos e profundos. Olhos de gente grande em pequeno corpo. “Você não sabe. Não sabe de nada.” “Ele fugiu de casa… “ Então a gargalhada. Dentes estranhamente brancos na escuridão da miséria. “Não me diga…” A ironia era a base de sua argumentação. “Cê tem dinheiro dona?” Os olhos dele agora eram sem brilho. Ameaça clara. Violência prevista. Fareja o medo que exalava do corpo da mulher. Fuga. Interrompeu a conversa e na distância procurava a segurança, o afastamento do corpo outro. O menino-cão. Já não podia ver, mas ouvia a gargalhada da criança, e em seguida o latido do cão. Pânico. A esquina. Dobrar a esquina. Correr. Correr mais. Adrenalina. Medo. As casas apagavam os olhos. Poucas viam com suas janelas de luzes amarelas. Poucas luzes. Postes-defuntos-esqueletos colunas de sombras. E o cão em dentes que se abrem para a fome da carne. Brancos dentes na estranha escuridão da rua. E então o muro. O salto, o corpo que rola, bate, machuca-se do outro lado. A porta agredida, gritos que pedem socorro. A boca que se abre. Da casa. Devorando-a. comendo-a. Do outro lado da rua: “Tem um dinheiro ai dona?” E a gargalhada. Latido?
A mão que arrasta. Agarra o corpo. Para o centro da sala. Do espaço. Os olhos gordos. O rosto grande. O sorriso de dois dentes. Dois dentes de todos os sorrisos. “O guri é bobo, gosta de assustar as gentes.” Começa então o ritual da palavra. Concatenação das idéias. Das tentativas de interpretação e reconhecimento.
“Meu nome é Norma…” Ela ria. “Mas todo mundo me chama de Inorma…” E levantou-se. Estava agachada. Enorme. Vasta. Imensa.
Diante dos olhos da outra, Inorma sorriu mais uma vez.”É…eu sei, não sou pequena… mas sou feliz. Vou dizendo. Sou muito feliz.” “E você, é feliz?
Ser feliz. Em pé. Diminuída em frente a montanha viva chamada Inorma, ela pensava em felicidade. Pensava? Não. Não pensava.
“Eu procuro um menino de doze anos… ele fugiu de casa…”
“Você nunca fugiu… de casa?” “Eu achava que todos nós fossemos fugitivos de alguma coisa ou lugar…” “Você foge de quê?…” Diante do silêncio da professora, os olhos de Inorma se estreitaram. “Qual é o teu nome?” Havia uma ameaça na pergunta? Foi então que se deu conta que tudo estava escuro. A única luz era a do banheiro que mal iluminava a sala. “Dá para acender a luz?”
“Não há luz.”
“Como assim? A luz do banheiro está acesa… e…”
Rodopiou e caiu. Sentiu o corpo esbarrando em coisas no chão.
“Ninguém gosta de Inorma.” “Ninguém mesmo. Dizem que Inorma é grande e feia, feia e grande. Zombam de Inorma pelo tamanho e forma.” E eram gritos. Berros que o discurso de Inorma produzia, erigia. Erguia em palavras de fúria e raiva.
Um isqueiro. Um cigarro trêmulo. Pouca luz em tanta escuridão… Agora a enorme mulher chorava. “Muito. Eles não gostavam. Não gostavam de mim. Não gostavam de Inorma…”
A professora tentou levantar-se, e estendendo a mão como apoio para o corpo percebeu que a realidade começava a fazer chacota dos seus nervos.
“O que você fez… O que você fez Inorma…”
A pequena chama do isqueiro fazia aparecer e desaparecer os corpos no chão. Dois. um homem, já de idade. A mulher um pouco mais jovem. Defuntos. Gelados. A professora levantou-se trêmula, escorando-se na parede. Precisava ir. Sair. Fugir. Já não entendia mais nada. Onde estaria escondida a realidade?
“Eles prendiam… me prendiam no banheiro…” A mulher enorme mostrava os pulsos esfolados. “…como bicho, e eu não era bicho…”
A rua estava atrás da porta. E Inorma estava na frente. Enorme.
“Não era justo…não era não.” “Riam. Davam risada de mim. Matei.” “Mereciam. Mereciam mesmo…”
“Tenho que ir Inorma, preciso encontrar o menino. Ele deve estar sozinho…”
Inorma começou a chorar. “Sim, sozinho. Como eu. Sozinho coitadinho… “ Ela desmoronou. Sentada. Em soluços comoventes e assustadores. Fuga então. Movimento rápido. Mão na maçaneta. Abertura, um passo-salto-mergulho. Rua. Corrida. Então parou. A rua estava vazia. E os lamentos da mulher-grande ainda se ouviam.

Ela abraçava o homem. Devia ser o pai. Acariciava ternamente o rosto frio da morte. E ninava-o com uma antiga canção. Ela percebeu que a mulher voltava. Estava parada na porta. Observando.
“Meu nome é Ida.”
A grande mulher sorriu com seus dois dentes. Sorriu com os olhos. “Obrigada. Bonito nome… ida, bem-vinda, vida…”

Escorada em um muro ela observou quando dois carros da polícia e uma ambulância pararam defronte a casa. Quando Inorma entrava na ambulância. Quando os vizinhos – somente agora – começavam a sair à rua. “Denúncia.” Ouviu de longe uma senhora falando.

Estava ficando tarde. O que queria provar? O que era o menino? Quem era o menino? Quem era ela?
Estava chorando quando ele chegou. Tentou apagar as lágrimas. Borracha em texto mal escrito.
“Perdida?”
Era o homem do bar. Estava assustada. Constrangida. Mentir?
“Sim.”
“Aqui é perigoso dona. Ainda mais nesse horário. Bandido tem de quilo por aqui.”
“E loucos.”
“É loucos também tem muito.”
“O que eu faço?” As lágrimas escorrendo. Soluços. “O que eu faço?”
“Vá para casa. Descanse. Amanhã procura novamente…”
“Não posso parar… não devo…”
“Onde você o viu pela última vez?”
“Na parada de ônibus perto da Igreja Grande.”
“Você viu ele na parada?”
“Não… estava no ônibus. Do meu lado…”

…do meu lado… riscou a palavra lado. Parou. Um cigarro aceso. Levantou-se. Completamente sozinha. Pijamas. O aquecedor próximo a cadeira. A mesa coberta de livros e anotações. O notebook ligado…
Foi até uma estante. A foto do menino. Sorriso de dentes separados. Fresta entre todos os mundos. Buscas incansáveis. Buscas incansáveis. “Onde você anda meu filho?”
O livro estava próximo do final. Pretendia um final feliz. Não sabia bem… todos gostam de um final feliz.
Sim. Ele teria um final feliz… uma lágrima escorreu pelo rosto e dilui-se em lembranças e angústias…

Ronie Von Rosa Martins

Deixe uma resposta