Arte Literatura Ronie Von R. Martins

Guri no Buraco

Era um buraco. Um belo e escuro buraco. Sem medo enfiou a mão que se perdeu no outro mundo. Um belo buraco. Pensou.
A possibilidade estava dada. O buraco o olhava. Olho de escuro brilhante e sedutor. Profundidades abissais, aventuras inenarráveis. Os lados. Observou. O vazio da vida real. Nada. Só o mesmo. De sempre. Coisas e mais coisas. Pessoas e mais pessoas. Coisas de pessoas. Reações de pessoas. Sentimentos de pessoas. Muito chato. Um mundo dominado e resumido pela pessoalidade.
Não havia laranja, nem a cerca do vizinho. Estava só. No campo. Ele e o buraco enorme. Olho que refletia a intensidade de seu prazer e curiosidade.
China?
Diziam que todo buraco ia dar na China. Sorriu ao pensar em visitar a China, aquele mundo amarelo cheio de gente amarela com aqueles sorrisos enormes cheios de dentes “né?”.
Mas e se não gostasse? E se fossem uns bobalhões e só quisessem comer arroz? Tinha horror de arroz. Só se fosse com batatinha frita, feijão e bife. Mas só arroz? Vai ver que era por isso que eram amarelos. Mas pra ser amarelo deveriam comer milho, e não arroz.
E se fosse um túnel para um outro mundo. Um reino encantado cheio de fadas e gnomos. Todo mundo andando com aquelas calças coladinhas na bunda e de botinhas. Tudo verde. E de bonezinho.
Seria piada para toda a rua. Não, não queria virar gnomo, sem essa de calça apertadinha. Estufou o peito. Era um homem. Tinha sete anos. Ia pegar muito mal para a sua reputação. O que iam dizer lá no jardim. Que era maricas? Teria que brigam com o Paulinho Toca-flauta. Ele tava sempre se arriando neste ou naquele. Ia apanhar. O Toca-flauta era enorme e mau.
Ele é que devia entrar no buraco e ir pra China. Se empanturrar de arroz até estourar. Sorriu ao pensar no menino inchando com a boca cheia de arroz. De pois cada vez que enxergava o Toca-flauta caia na risada. Levara até uns tapas do outro, mas não adiantara nada. Acabou que quando Paulinho avistava o menino, dava um jeito de se esquivar.
O resto da gurizada percebeu as tramóias de escape do Toca-flauta e acabaram trocando o apelido do Paulinho para Paulinho Tô-fora, pois cada Vez que encontrava o menino, dava um jeito de sair de fininho.
Mas voltamos ao buraco. Entrou. De cabeça. Escuro. Apertado. O coelho da Alice abanou para ele. Ele sorriu. Lembrava da história. A avó contava. Lia um livro antigo. Cheio de desenhos. Gostava do coelho. Mas gostava mais do Chapeleiro Maluco. Será que existiam mesmo? A vó contara que a Alice acordou e percebeu que tinha sonhado. Ele sorriu. Ninguém sonha assim tão bem. Nem a Alice. Nem mesmo a Emília. Aquela boneca de pano. E o Visconde. Paraou. Pensou. Até que o Visconde e o Chapeleiro … será que eram irmãos. Não. Não podiam. Ou podiam?
Mas as pernas não podiam. A cabeça queria entrar além, mais fundo. Invadir a terra, conhecer as entranhas. Mas as pernas presas na superfície não permitiam. Correntes que o mantinham neste mundo de cá. Tentou voltar. A cabeça cheia de terra. O nariz sujo. A roupa imunda. Preso. Preso no buraco. Entre dois mundos. E agora?
O choro veio. De mansinho, logo se transformando em fúria e pânico. Pernas encenando todo o seu desespero.
Só sentiu quando algo segurou suas pernas e o puxou para fora. Ainda chorando. A mãe o segurou no colo. Sentada na grama. Depois deitados em abraço comovente. Um sorriso que era o mesmo descansava tranqüilo no rosto de mãe e filho.

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