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Conto: Quimera – Capítulo IV

Quimera – Capitulo IV

Por Milton T. Mendonça

O silêncio caiu como uma capa. Tornou-se o terceiro personagem sempre a se infiltrar entre nós.

– Entre todas as esquisitices que enfrentamos hoje a que me deixou mais zangado foi aquela história de mudar o nascimento do prometido para outro século. Anterior ao seu próprio nascimento… E aquela história do Lucas? Sinto-me lesado com essas afirmações. Nossa civilização foi construída em cima de uma mentira… De um mito?

Externei meus pensamentos rasgando a capa que tentava me sufocar.

– Espero que saiba que temos problemas muito maiores que essa bobagem, mas vou explicar rapidamente o que aconteceu. Não crie fantasia os fatos são menos rocambolescos…

Articulou irritada demonstrando sua preocupação com o futuro.

– O nascimento não coincide porque nosso calendário foi criado mais de mil anos  depois e não deu para ajeitar o tempo. Chutou-se mais o menos. O mais importante para a época em que ele foi criado era ter uma maneira confiável de contar o tempo. E estavam certos! O que importa quando Ele nasceu? Faz alguma diferença para você?

Respondeu seca querendo acabar logo com minhas duvidas tolas.

– E sobre Lucas?

Insisti não arredando pé.

– Lucas era um cara esperto! Aproximou-se de Maria. Parece óbvio quando se lê os textos de sua autoria. Nota-se o olhar da mãe sobre os feitos do filho. Além de ser ele que nos conta a história de sua concepção e nascimento. Quem saberia de tantos detalhes a não ser sua mãe? Historicamente sabe-se que ele foi o apóstolo mais próximo de Maria, mesmo sendo a João que Ele entregou sua mãe. Confie mais!

– Podemos parar com isso e voltar às preocupações mais urgentes? Precisamos descobrir quantos são os cemitérios e onde ficam.

Levantei-me de um pulo e corri ao meu quarto. Retirei do armário sobre o guarda roupa a mala que levara na minha ultima viajem. De dentro retirei a maleta de couro e levei para a sala depositando na mesinha de centro que arrastei do canto onde estava  colocando-a entre nós. Elisa aprumou o corpo percebendo minha agitação e emitiu um leve som de espanto ao me ver retirar de dentro da embalagem o pequeno netbook.

Pluguei o modem na porta USB e me conectei a Internet. A página do Google apareceu quase imediatamente. Digitei as palavras certas e surgiu a lista de possibilidades de respostas para minha pergunta. Escolhi a mais provável e fui encaminhado à página do guia+ onde segundos depois sabia o endereço dos seis únicos cemitérios da cidade. Retirei a mini-impressora da pasta de couro conectei-a coloquei papel e imprimi a informação entregando a Elisa que me olhava surpresa.

Segurou a única página sorrindo com satisfação. Olhou-a demoradamente e sugeriu o roteiro que deveríamos seguir nos próximos dias.

Convidei-a para lanchar. Lembrei-me de repente que não comíamos desde o almoço do dia anterior. Ela foi para a cozinha enquanto fui para frente do cavalete. Enquanto conversávamos uma imagem se fixou em minha imaginação precisava criá-la na realidade para mostrar ao mundo.

Coloquei sobre o cavalete vazio uma tela que pegara do meu estoque encostado á parede limpei a paleta rapidamente depois os pinceis. Depositei as cores primárias na paleta dando atenção nas tonalidades claras misturei os tons para formar o sépia do esboço e me joguei freneticamente no trabalho

Trabalhei com afinco por quase uma hora. Elisa entrou no ateliê enquanto dava um retoque delicado em uma das figuras e esticou o pescoço para ver o que estava pintando. Não deixei. Cobri a tela rapidamente larguei o pincel sobre o banco e segurei seu braço levando-a para cozinha.

O almoço estava servido e me impressionou a habilidade que ela tem em transformar alguns ingredientes simples em uma comida sofisticada e agradável aos olhos e nariz.

Sentei-me e me servi sem esperá-la. Quando ia levar o garfo à boca seu braço apareceu de repente e tomou-o de mim.

– Calma!

Falou em tom de brincadeira.

– Temos que agradecer pelo alimento.

– Obrigado!

Exclamei rapidamente e tentei pegar o garfo de volta.

-Não! Vamos agradecer com respeito.

Voltei com o corpo que estava meio levantado para alcançar o garfo e me sentei ereto. Esperei que se sentasse e colocasse a comida no próprio prato. Estendeu as mãos e fez o gesto com os dedos pedindo que as segurasse.

– Obrigado senhor por esse alimento.

Agradeceu assertivamente.

Fiquei olhando-a perplexo.

– O que foi?

Perguntou-me sorridente.

– Somente isso? Posso?

Respondi perguntando com cara de gozação e mostrei meu prato cheio até a borda, com as duas mãos, enquanto o braço apoiado no cotovelo ficava firme sobre a mesa.

– Não precisa mais do que isso o importante é a sinceridade… E respeito.

Respondeu com ar de professora primária.

A comida estava muito boa merecia um agradecimento mais eloquente, mas preferi ficar calado e saborear aquela iguaria sem mais demora.

Enquanto o alimento era deglutido Elisa me mostrou as anotações que fizera enquanto cozinhava. Analisei com cuidado e achei seu plano bastante engenhoso. No dia seguinte pela manhã começaríamos pelo cemitério mais longe de nossa casa e por último o de Eugenio de Melo, que pela sua compreensão era o mais próximo.

Voltei á pintura enquanto Elisa ficou nos afazeres domésticos. Trabalhei até cinco horas e quando ela veio ao ateliê estava assinando a obra. Mandei-a se sentar no divã retirei a tela virei-o cavalete e recoloquei-a de volta coberta com o pano.

– Não se assuste essa é diferente de todas as outras.

Anunciei minha preocupação na intenção de confundir sua percepção e compreender melhor seus sentimentos quando visse o quadro.

Retirei o pano olhando seu rosto com atenção. A primeira impressão é a verdadeira mesmo que o interlocutor não saiba disso. No segundo que seus olhos captaram a imagem uma expressão de confusão surgiu como se sua imaginação esperasse algo totalmente diferente. Aos poucos, porém, sua fisionomia mudou e um brilho de prazer surgiu em seus olhos fixos. O sorriso se abriu aceitando com deleite a visão pictórica impressa em sua íris.

Fui até onde estava e me sentei ao seu lado. Na imagem em degrade predomina o azul. O fundo suave derrama o céu profundo em um mar calmo e sem fim onde golfinhos dançam alegres fazendo piruetas no ar e tocando com suas barbatanas as asas longas e prateadas das gaivotas que refletem a luz do sol morno e aconchegante. No primeiro plano sentada na pedra sobre a areia branca a mulher vestindo trajes de matrona acaricia a cabeça do jovem de cabelos compridos da cor do mel que ajoelhado deita-a em seu colo. A jovem senhora olhando o infinito demonstra em seu rosto a dor profunda que avassala sua alma por entregar o filho ás exigências do mundo, mas em seus olhos existe apenas um grande amor. Amor e compreensão.

– Cabelos claros! Deve ser Lucas, não é?

Elisa saindo do estupor e fingindo indiferença pergunta com voz embargada.

Olho-a espantado. Percebo uma lágrima discreta em seus olhos meigos que tenta disfarçar.

– É Lucas mesmo. Ele era grego… Não devia ser moreno escuro, não é? Ainda não tinham se misturados aos Otomanos.

Respondo suave comovido com suas emoções.

Ficamos sentados em silêncio cada um com seu pensamento. Estou cansado e não quero fazer mais nada. Vou à cozinha e trago uma garrafa de vinho abro-a e encho duas taças entregando uma a Elisa. Segura-a e limpa o nariz ao mesmo tempo tomando um longo gole em seguida.

Beberico o meu vinho curioso. Porque será que ficou tão emocionada? Talvez tenha perdido um filho – penso comigo mesmo, mas não digo nada. Não quero invadir sua privacidade.

O tempo escoa como a água de uma cachoeira. A noite chega e continuamos sentados inertes. Estou bêbado. A segunda garrafa jaz vazia sobre a mesa. Nesse intervalo cada qual se entrincheirou dentro de si mesmo apenas tocando o outro de vez em quando para ter certeza de não estar só. A noite passado em claro e o dia fora cheia de experiência extravagante. Somente queria dormir. Levantei-me do divã e acendi a luz iluminando o ambiente e despertando Elisa. Levei-a para seu quarto e deitei-a na cama. Não ousei tirar sua roupa… Não estava tão cansado assim. Saí de lá e deitei-me dormindo imediatamente.

Amanhece ensolarado. Levanto-me rapidamente me visto para sair e vou à cozinha. Elisa está terminando de fazer o café e o aroma espalha-se pelo vento deixando um rastro de felicidade por onde passa.

–  Bom dia!

Exclamo alegre.

Ela se volta e sorri calada. Parece absorta e imagino que esteja com dor de cabeça por causa do porre da noite anterior.

– Que bebedeira… Parece que a ressaca está brava.

Falo tentando animá-la e recebo um olhar ambíguo.

– Estou preocupada. Precisamos encontrar o local do ritual o mais rapidamente possível.

– Começaremos hoje a procurar… Não se preocupe. Existem apenas seis cemitérios e tenho certeza que a maioria será descartada sem nem mesmo descermos do carro

Digo para tranquiliza-la.

– Pode estar certo… Venha, sente-se.

Sentei-me á mesa e me servi generosamente comendo além da conta me prevenindo por imaginar que o dia não nos daria tempo para outra refeição. Elisa na minha frente observa satisfeita meu apetite voraz empurrando vez ou outra o presunto o pão ou o bule de café em minha direção me instigando ao pecado da gula. Enquanto se alimenta frugalmente de queijo e café preto.

– Vamos embora!

Exclamo após ter ingerido alimento em demasia.

Levantamos e saímos do apartamento nos dirigindo ao estacionamento em busca do automóvel. Saio devagar ouvindo o barulho da brita ao ser esmagada pelos pneus e por alguma razão a presença de Elisa misturada ao som me deu a sensação de estar em família a caminho de uma festa. A mesma sensação de quando sinto o cheiro de carne de porco assada ao forno. Um cheiro peculiar de natal em família. Uma sensação que não me lembro de ter sentido realmente algum dia, mas que faz parte de minha memória não sei bem por que. Gosto de imaginar romanticamente que é uma premonição. E sentindo isso na presença de Elisa é com o se finalmente alcançasse minha imaginação.

– para onde?

Pergunto olhando-a com carinho.

– Cemitério municipal Maria peregrina Santana.

Responde-me olhando a pagina impressa, em suas mãos.

– Em Santana, certo?

Confirmo virando o carro e entrando na rua

– hum hum.

Responde concentrada no papel.

Dirijo o carro pelas ruas movimentadas da cidade passo pelo centro contorno a praça padre João e desço a Avenida Névio Baracho atravessando o viaduto e passando frente ao parque da cidade, que na verdade se chama parque Burle Marx em homenagem ao paisagista que o projetou. Contorno no posto de gasolina para entrar na via leste e acelero saindo exatamente onde queremos: O cemitério de Santana.

A primeira coisa que vejo e Elisa coloca em voz alta é a falta de encruzilhadas. A esquina do cemitério sugere mais um T do que uma cruz. Somente dois lados da construção margeia a rua. Os outros dois lados estão escondidos por construções residenciais.

Decepcionados passo reto pelo cemitério entrando na Avenida Rui Barbosa. Acelero o veículo e minutos depois estamos correndo pela Avenida São José em direção a curva do S para fazer o contorno e pegar a João Guilhermino e voltar ao centro. O cemitério padre Rodolfo Komorek fica na Rua Francisco Rafael. Entro na Rua Antonio Saes e depois de adentra-la algumas centenas de metros enxergo seu muro.

– Deste lado existem duas encruzilhada!

Elisa exclama ansiosa.

Passo frente ao portão e estaciono próximo ao restaurante do coronel. Saio do veículo e atravesso a rua acompanhando o perímetro do campo-santo. Sempre escoltado por Elisa. A primeira esquina que une os fundos da construção com sua lateral forma um T sigo em frente e do outro lado a rua termina na calçada. Falta a perna necessária para concluir o desenho esperado.   Continuo seguindo pela outra lateral voltando ao ponto de partida, mas na encruzilhada seguinte. Atravesso a Rua Francisco Rafael e paro na esquina com a Rubião Junior e me volto ficando de frente para o cemitério.

– Meu ombro esquerdo está exatamente no muro.

Exclamo espantado.

– É mesmo. E três ruas formam a encruzilhada. O cabo do tridente pode ser a Antonio Saes que está no meu ombro direito.

Elisa responde agitada.

– Não vejo o tridente.

Observo olhando fixamente em direção ao final da rua.

Elisa pega em meu braço e me puxa subindo a rua. Caminhamos em silêncio pela calçada tentando imaginar onde poderia estar o tridente. Chegando à esquina paramos e observamos á nossa volta.

– Pode parecer absurdo, mas estou vendo uma possibilidade.

Falo entusiasmado.

– Não consigo ver nada.

Responde insegura.

– Onde poderia ser?

– Presta atenção e tenta imaginar: Vire a direita por aqui.

Aponto a esquina a nossa direita.

– E depois vire a esquerda naquela esquina alí.

Aponto a esquina mais adiante.

–  Vai sair na João Guilhermino. Consegue ver o dente?

– Sim! É verdade!

– Continuando em frente de onde estamos até a João Guilhermino pode ser outro dente com o cabo terminando na Rubião Junior.

Gesticulo com as mãos como se cortasse a rua de cima para baixo.

– O outro dente pode ser essa rua a esquerda…

Elisa fala rápido.

– Apesar de o dente estar meio torto não quer dizer que não seja um garfo… Ou um tridente.

Tento convencê-la.

Sim! Acho que encontramos.

Elisa pulou no meu pescoço e me beijou. Soltou-me encabulada e antes que pudesse recuperar da surpresa me puxou de volta para o carro.

– Precisamos ir aos outros cemitérios para ter certeza de que não estamos enganados.

Concordei com a cabeça. Seria muito desagradável se descobríssemos o nosso erro somente na segunda feira.

Deixamos o cemitério para trás virando o automóvel na Rua Siqueira campos. Ao passarmos pelo mercado municipal Elisa desejou entrar e comprar ingredientes para suas receitas. Estacionei o carro e penetramos no prédio.

O sol do meio dia estava queimando nossa pele e o clima ameno do interior muito agradável. Vasculhamos as bancas de frutas e verduras saindo carregado de sacolas. Aproveitei para comprar mais algumas garrafas de vinho partindo pouco depois da uma hora. O odor característico de qualquer mercado é inconfundível. E esse além do odor serve o pastel mais gostoso da região. Antes de ir embora não deu para resistir uma visita à pastelaria.

A descoberta do local do ritual desanuviou o clima dentro do carro destravando a língua de Elisa.

– Porque essa raiva de religião?

Perguntou-me quando já estávamos a caminho do Morumbi com seus dois cemitérios. Apesar de um deles ser apenas crematório e faltar um dos requisitos para o ritual: Três corpos recém-enterrados.

– Não consigo compreendê-los.

Respondo sucinto.

– Participou de alguma religião?

– Tentei. Conclui que seus membros não me enxergavam apenas via em mim seus próprios egos refletidos.

– Conclusão perigosa… Teve argumentos para tanto?

– Na verdade não tenho certeza.

Respondo depois de refletir por algum tempo.

– Não entendi.

– A raiva que sentia pode ter prejudicado minha percepção.

Afirmo rindo.

– Raiva? Raiva por quê?

– Não sei bem… É um pouco louco. A impressão é de que não entendem nada do que ouvem. Estão na igreja por falta de opção, sei lá… Fazem da igreja um local de reunião social.

– A igreja é um local para se socializar. Não é apenas uma escola bíblica… Um local de busca.

– Não respeitam a si mesmos nem ao outro. Consideram-se santificados o que é uma lástima… Não sei, creio que não me dou bem com o ser humano… São muito rasos. Em seu universo somente existem três assuntos: Ou falam de si mesmos. Ou falam mal do outro. Ou buscam por sexo. Na igreja a palavra sexo é substituída por casamento, mas o impulso é o mesmo.  Não têm vida interior. Apavoram-se com o silêncio…

– A maioria do ser humano é de pessoa simples… Comum.

– Comum e ególatra… Idolatram o próprio ego… Isso não é pecado?

– Essa é a verdadeira idolatria, mas poucos entendem isso.

– Creio que na verdade não sou uma pessoa muito sociável. Os códigos sociais me fogem totalmente. São incompreensíveis para mim.

– Precisa se casar!

Elisa retrucou brejeira.

– E com uma mulher bem sociável.

Continua, rindo alto.

Olhei-a sério e não disse nada.

Ao virar a esquina da Travessa Capitingal freei abruptamente. O carro dos demônios que nos raptaram estava estacionado no meio fio. Da janela a mulher conversava com o menino na calçada. Desci rapidamente e caminhei em sua direção.

– João venha cá!

Grito para o pequeno.

A mulher me olha furiosa enquanto o carro arranca virando a esquina como um bólido. Volto correndo e vou atrás deles.

– O que aconteceu?

Elisa pergunta espantada esfregando o peito.

– Estão tentando raptar crianças!

Exclamo agitado.

– Quem?

– Os demônios…

– Como? Quem quer raptar crianças?

– Os demônios! Estão procurando vitimas para serem sacrificadas.

– Ah! Você viu?

– Sim! Estavam tentando raptar o menino… Você não viu?

– Não! Estava olhando para você quando freou feito um louco quase quebrou minha costela.

– Desculpe! Vi o carro deles parado e uma mulher conversando com o menino e me apavorei.

Lá estão eles depois do Kia vermelho está vendo?

– Sim, são eles mesmos… Vá devagar não deixem que o vejam.

Elisa empertigou-se no banco apoiou as mãos no painel e ficou observando o carro dos demônios.

Continua…

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