Primeiro foi o estômago. A necessidade de uma certa saciedade. E o encontro com todos os corpos presos a esta saciedade. Corpos que reduzem os espaços. O restaurante é uma grande estômago. E somos o alimento. Comida. Comendo. Os olhos nem vêem. Mas o calor é sentido. E enquanto caminho equilibrando meu prato de arroz salada e um singular peixe frito, percebo a dificuldade de locomoção do meu corpo que se desvia de cadeiras, mesas, e conversas desinteressantes. A televisão me impõe um jogo de futebol. Mesmo sem querer meus olhos a buscam. Camisas amarelas deslizam em fluxos virtuais. Sento junto ao grupo de amigos, tentamos começar uma conversa. Produzir discursos e dizimar a fome. Um estranho senta em nossa mesa. Jamais teria coragem de fazer isso. Ele come como se não fôssemos ninguém. Não éramos. O sujeito de sua vontade era a fome. O objeto o prato de comida. Seus olhos não buscam nada além. A fome. Estou impaciente. Outras pessoas aguardam com seus pratos fumegantes e suas porções únicas de carne. Estamos no terceiro salão. Há um corredor entre o salão da frente, por onde entramos. Há um sofá velho e a porta da cozinha. A produção do alimento. Não gosto de ver fazerem o que como. Um homem pequeno está no sofá. Parece ler um jornal. Não sei se faz parte dos donos do lugar ou só espera por uma mesa. Estamos sempre esperando… sempre esperando por uma mesa…
Em uma pequena churrasqueira perto do corredor um senhor de aparência germânica prepara um espeto de frango. Na verdade são várias coxas de frango. Ele corta. E rapidamente come um pedaço. Parece estar em casa. Sinto vontade de uma cerveja. Bem gelada. Bebo um gole de refrigerante. O “pessoal” está alegre. Conversa inteligente, coisa de faculdade, projetos. Algumas piadas. Eu insisto para que terminemos logo. Quero sair. Ar. Alguns ficam. Eu e uma colega abandonamos os que comem. Ela busca fogo com um senhor baixo e negro que está escorado em uma porta. Volta satisfeita. O cigarro aceso. Estou cansado. Suado. Logo todo o grupo sai. Abandonar de vez “os que comem” é um alívio para mim. Há um colega que nos re-conduz. Conduzir é uma palavra interessante. Tem uma certa pompa, estilo, “meio que afetado, meio sacerdotal” lembro do poder pastoral em Foucault. Mas não é o momento. Nossos corpos estão comodamente acoplados à lataria e o estofado do carro, e ao motor, e ao som das rodas nas ruas de pedra e ao fluxo dos outros carros e ao tempo que escorre e à distância que diminui. Meu estômago dá o sinal. Meu inimigo. Criança levada que sempre complica o passeio. Finjo não perceber. Finjo não perceber que os outros perceberam. Todos fingimos. E agora estou no banheiro. Escovando os dentes e me olhando. Um rosto no outro. Cuspo a água e saio. Há um trabalho ainda por fazer. Pesquisa de campo. Uma praça. Meus amigos estão no jardim e a conversa é sobre homossexualidade, sexo, liberdade e essas coisas. Tentamos dar um tom inteligente aos nossos comentários, eu tento. Exercício de oratória.
Há uma necessidade de aquecer água. O chimarrão é um apêndice do meu corpo. Mas pesa e as vezes fico com vontade de fingir que o esqueci e abandoná-lo. Nunca faço. E carrego-o por onde ando.
Minha bolsa e o notebook pesam no meu ombro. Mantenho a pose. Agora o blazer também está no braço. O calor é intenso. As conversas dos colegas parecem um som estranho. Sei que estão ali. Reconheço suas vozes, mas estou longe. Caminho observando os corpos e os espaços que eles ocupam. Andam rápido. Sérios. Alguns passam as mãos na barriga. Comeram. Tenho vontade de alisar minha barriga também. Impossível. A mateira na direita e o casaco na esquerda. A bolsa no obro. Tenho que ter equilíbrio. Penso em sentar perto do chafariz. Sombra. Tomar um chimarrão. Descansar. O que me chama atenção de início é o lânguido descanso de dois jovens. Homens. Em um dos bancos que circundam o chafariz. Um está sentado e o outro tem a cabeça no colo do outro. São jovens. Parecem felizes. E minha maldade começa a tecer comentários maldosos. Quero sentar em uma sombra. Mas o sol no momento é senhor. Uma de minhas colegas que encontramos na praça, a praça era o local do encontro de todo o grupo. Pesquisa de mestrado. Começa a fazer anotações, ela parece lhar para a água. Nesta praça existe um pequeno espaço onde algumas tartarugas e peixinhos sobrevivem. Ela é aplicada. Minhas colegas, outra. Notam uma tatuagem que quase salta para fora das costas de uma moça que conversa com um “suposto” namorado. Não me atrevo a olhar mais que alguns segundos para a imagem da carne tatuada. Já não é o caso das minhas colegas que mais tarde discorreriam sobre os prós e contras de fazer uma tatuagem. Ainda lembro de algumas palavras que a professora, lá de sua “torre” próxima à praça dissera. Nosso QG era uma doceria, subíamos algumas escadas para ouvir nossa professora americana. Texas. Estávamos em Pelotas. Eu sou de Pedro Osório. Distâncias, proximidades, encontros. “determinar um foco” . Era para escolher o que ver, o que analisar. Lembro de ter observado pela janela e perceber as pessoas e os carros. O movimento que circundava e penetrava a praça. E também fluía dela para a cidade.
“Os velhos jogavam damas”. As palavras tem força. E isso não é meramente uma metáfora. Havia dois tipo de jogos bem definido naquele espaço, ou naquele não-espaço como dizia Bauman. Em um tabuleiro, sentados ou em pé, alguns aposentados se distraiam jogando damas. Estratégia simplória e divertida. Mas em outro tabuleiro, as “damas” se mostravam estrategicamente aos olhos desconfiados e brilhantes de outros aposentados. Percebo que duas delas estão em um banco logo a frente de mim e de meus colegas. Estão discretas comparadas a algumas roupas que algumas meninas da “moda” costumam usar. Não conversam muito. Uma procura uma música no celular, faz esse comentário para a amiga. Percebem que estamos apontando e as observando de forma diferente e nos abandonam.
Eu vago por entre meus amigos que se distribuem na praça. Não aponto nada. Esqueci de trazer papel e caneta. Gostaria de escrever. Tiro a câmera da pasta. As fotos não são boas. Tenho medo de interferir, atrapalhar a privacidade dos outros. Percebo que uma menina que está namorando em um banco nos observa, por alguns segundo eu também a observo. Sou um homem de meia idade, com a cabeça cheia de filmes e livros, ela é bonitinha e não parece ter o mesmo interesse que o namorado lhe devota. Volta e meia ela me olha. Ou olha para todos nós. Somos um organismo estranho na praça. Intimamente prefiro pensar que ela me olha. Faço um carinho no meu ego. Homens de meia idade e casados e comportados frequentemente têm esses arroubos. Ela está curiosa. Eu também. O que ela está pensando? E o namorado que procura um beijo, uma boca e recebe apenas uma bochecha?
Todos os caminhos levam a um centro. Ao chafariz. E todos os corpos caminham para perto ou para longe dele. Um homem de chinelos e com um curativo no braço enfia as mãos na água , lava o rosto e molha o cabelo. Alisar o cabelo. Limpar o corpo. Sai satisfeito. Os velhos procuram o banheiro. E o banheiro fede. Meus amigos analisam a situação. Quantos entram, quantos saem. Eu entro. Pedem que tire uma fotografia. Mictório imundo. Vaso imundo. O papel não é higiênico. Ó que limpa são os panfletos das lojas. Estes estão sujos e amontoados em um cesto também imundo. “grevistas” é a palavra que se encontra escrita em uma porta cor de laranja. No canto logo à saída uma vassoura dentro de um balde verde. A promessa de algum tipo de limpeza ainda por vir.
Depois são os livros. Encontro com uma colega que me diz saber de dois sebos ao redor da praça. Me empolgo. Livro é uma coisa que me excita. Penso em uma cerveja gelada. Desta vez não digo. Bebo a cerveja mentalmente. O primeiro sebo está em construção. Os livros estão no chão. Poucos. Didáticos. Me decepciono. Algumas quinquilharias. O tempo passado abrindo brechas no presente. O outro é organizado, livros enfileirados. Não gosto. Muita ordem. Voltamos à praça. Duas senhoras atravessam o não-lugar. Uma delas é surpreendente. Vestido branco. Salto alto e fino. Cisne que desliza… mas é deselegante e feia. Tenho pena de tanto branco. Ofusca.
Meus colegas comentam sobre as “divisões” da praça. Onde ficam as prostitutas. Fico pensando se a palavra “prostituta” não é mais feia que “puta”. Fico na dúvida. Uma é institucional, a outra é do povo.
Dentro da praça. No corpo da praça. Várias pessoas tomam chimarrão. Os rostos são mais calmos e descontraídos. Ao sair da praça assumem suas máscaras. Os passos dobram de velocidade. Mas são outros. Nunca são os mesmo. Rio de Heráclito.
Agora a praça está tomada por jovens. Bem no centro. Junto ao chafariz. Turmas, gangues, grupos. Poucos estão ali sozinhos. Os que estão só. Caminham para longe da solidão.
Há também um artista interessante. Chapéu estranho. Chega de bicicleta e declama/canta seus versos estranhos e críticos. Excentricidade. Mais um produto?
É hora de ir. Ainda lembro do homem que atravessou os canteiros e cumprimentou as duas prostitutas que estavam perto de nós. Da mulher que empurrava o carrinho de nenê. Das três moças levemente obesas que tomavam mate quando chegamos. Do senhor “aposentado” todo velho parece um aposentado aqui. Nessa praça. E da rapadura que retirou do pote de plástico.
Lembro do fluxo intenso de corpos que mudavam de lugar e se locomoviam pelos possibilidades da praça. Lembro da minha colega simulando uma prostituta ao se afastar para fumar. Do outro colega que mesmo concentrado em suas tarefas de pesquisador, ainda arranjava tempo para tratar de negócios pelo telefone.
Minha parte no relato da pesquisa foi mostrar as fotos do banheiro masculino para o grupo e para a professora. Minha amiga deu conta de relatar as andanças do povo pela praça.
Escapuli. Minha casa era o objetivo e desejo. Mais que a cerveja gelada. Na parada percebia o movimento intenso dos ônibus. O semblante carregado das pessoas que buscavam as linhas certas para os espaços certos. Uma cadeirante esperava o ônibus. Um sentimento de impotência me tomou. Queria fazer alguma coisa. Ajudar de alguma forma. Todos queremos ser heróis. Fiquei estático. O primeiro ônibus não pode levá-la, a estrutura do ônibus não permitia a entrada da cadeira de rodas. Mas o motorista foi solícito ajudou a moça a entrar em outro. Este com arranjos para a cadeira. Me senti um idióta.
Minha idiotice se desvaneceu quando percebi a tatuagem que adornava as costas de uma menina que supus já ter sido minha aluna. Conjeturei muitas coisas. Colorida tatuagem que espiava por entre uma calça apertada e uma blusa que teimava em encolher. Era boa aluna. Lembro. Não me reconheceu ou fez que não me reconheceu. Aceitei. Reconhecemos quem queremos… entrei no ônibus. E encontrei outro professor da mina cidade. Ele sorriu e disse: “do coração eu não morro.” Um exame médico entre as mãos.
Nesse mundo de velocidades intensas, um check up é indispensável.
Ainda lembro da informação da mulher no restaurante: “Você tem direito a só um pedaço de carne.”
Eu poderia escolher entre galinha, peixe e gado.
Espetei um pedaço de peixe… fácil e rápido de digerir.
Na rodoviária. No banheiro. No espelho. Meu rosto perplexo.
As torneiras não tinham água.
Ronie Martins