Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
“Versos de imprecação contra o mundo”, é o título do livro de poemas assinados por dois poetas paulistas. Os senhores Clayton de Souza e Witalo Lopes. Dividido em 4 partes os poemas versam sobre as temáticas específicas de: “O mundo”, com poemas sobre as armadilhas de toda sorte que nos espreitam, posto que não existe paraíso sem serpentes, “Nos contornos de Eva” reunindo poemas sobre sexualidade e amor, “Cronos”, poemas relacionados ao calcanhar de Aquiles da existência humana que é o tempo, e finalmente, “O gigante”, que reflete essa problemática estúpida em que o Brasil vai se transformando. Como se vê, não faltam motivos e razões para os “Versos de imprecação contra o mundo”. Ocorre, todavia, que os dois poetas lograram acertar na escolha dos poemas da coletânea onde só se pode identificar quem escreveu o quê, na numeração das páginas de cada poema onde a letra “W” corresponde à Witalo Lopes ou a letra “C”, óbvio, corresponde a autoria de Clayton de Souza. É projeto deveras interessante e que bem traduz esse nosso mal estar no mundo que se sente em toda parte.
Sigmund Freud (1856-1939) em O mal-estar na civilização, que é obra de 1929, (e depois dele muita gente, e cada vez mais), conclui que o indivíduo não pode ser feliz na civilização moderna. Mesmo com todo progresso técnico e cientifico o homem não se tornou mais feliz. Ao refletir sobre o propósito da vida, ele diagnosticou que de fato, em nossa civilização não se dá a realização da felicidade, mas a renúncia a ela. A vida do indivíduo termina se reduzindo a uma busca atrapalhada e constante pela realização da satisfação e do prazer. E esse mal-estar assume novas formas, porque ainda segundo Freud, estaria mais associado às condições econômicas e sociais que os indivíduos experimentam no mundo moderno. Nós os filhos da modernidade tardia, ou dos “Tempos líquidos” como diagnostica Zigmunt Bauman (1925-2017) somos espectadores de uma experiência que melhor se conceitua com fome, miséria, barbárie, guerras, desemprego, instabilidade econômica e social e soberanamente, a violência desenfreada. Há por toda parte raiva, ódios e “imprecações” que deságuam, via de regra, na violência exacerbada de todos contra todos.
Estamos psiquicamente enfermos. No atual estágio de nossa civilização não sabemos se nossas perspectivas serão realizadas. O mundo se torna cada vez mais (i)racionalizado e o trabalho se torna cada vez mais dispensável. A (i)racionalidade técnica cria cada vez mais domínio de objetos e instrumentos que acabam por mecanizar todas as estruturas sociais. O homem, entendido como homo faber, está perdendo sua importância. O desemprego estrutural (causado não só pela mecanização das estruturas sociais, mas por um declínio estúpido do capitalismo que poucos reconhecem), é a norma, sobretudo no Gigante brasileiro eternamente “deitado em berço esplêndido”. Esse desemprego atinge todos os países e torna inexorável o fim da sociedade do trabalho, o homem vai se tornando uma peça inútil na estrutura dos meios de produção. E vamos fabricando em larga escala indivíduos à margem, na massa de desempregados.
Voltando à obra “Versos de imprecação contra o mundo”, acrescentemos que é livro que nasce com o aval do crítico literário Sérgio Tavares que definiu muito bem no Prefácio, o projeto editorial dos autores, mesmo em que pese as diferenças de estilo, de referências da força de seus olhares, e que em última instância deram “forma a poemas que se encaixam harmoniosamente dentro da temática a que se propõem”, numa perfeita fusão de vozes. Acrescenta ainda o crítico que “Clayton de Souza e Witalo Lopes retiram seus alicerces líricos da realidade, de uma existência que tem um elo estreito com a arte sem que essa, de qualquer maneira, prevaleça na escolha dos modelos de percepção. Surgem em entendimentos incidentais, na modulação da forma, com características mais de verve que de argamassa. O elemento basilar é mesmo o mundo. Aquele no qual vivemos, sentimos, padecemos. Um mundo contra o qual lançamos nossas imprecações”. Outro crítico, Alcides Villaça, reforça que a obra “faz parte de nosso imbróglio contemporâneo em que se busca recuperar raízes na solidez do que vingou no passado e ao mesmo tempo entender os confusos vetores de nossa época”.
Muito bem; vejamos como esses dois jovens poetas sentem os confusos vetores de nossa época. Há na abertura da obra um poema sem título que acaba por se constituir em “carta” ao leitor do qual extraímos essa estrofes:
“Caro leitor, que frente a estes portões / Segue adiante com passo hesitoso / Num chão gretado por imperfeições.
– Talvez preveja ser árduo o caminho / Como é o termo de tais imprecações / Desvelando-lhe um Mundo em desalinho
Ou tema acaso o canto da poesia / Banido desse século mesquinho / Que tem por tudo a sua medida –
Não deixe ainda, ao entrar, toda a esperança / Leitor-irmão! (que não é hipocrisia / Sentir-lhe um igual, tal a semelhança).
A esta língua, proscrita pelo Mundo, / Compete restaurar nossa aliança / Elevando-nos desse charco imundo”… p. C-19.
E assim inauguramos a viagem proposta pelos autores, e encontramos outro poema que vale transcrever: “Perdemos o sentido”, p. W-30.
“Perdemos o sentido de valores / Como respeito, bons costumes… Tudo! / Não há moral, nem ética, senhores: / O egoísmo impera altivo e agudo.
No caos completo, sem freio ou pudores. / Silente jaz o grito tartamudo / (fingimos não o ouvir em seus clamores / C’ o menosprezo de um olhar sisudo).
É duro constatar que infelizmente / Não somos mais capazes (que aflição!) / De espanto ou de sentir alteridade.
Culpa de um coração resiliente, / Contaminado pela corrupção, / Ganância, consumismo e vanidade”.
Antônio Carlos Secchin destaca as “felizes releituras/desleituras que ambos operam de textos canônicos de nossa poesia, ora com viés cúmplice, ora ferozes, mas sempre criativos”. Veja-se a propósito o poema “Cavaleiro errante”, em que há clara referência à obra de Cervantes – Dom Quixote de La Mancha: “Teu senso de justiça, tua íntegra ética / nada podem contra os moinhos de vento”. Transcrevemos somente a terceira estrofe:
“Contempla esses colossos contra os quais te lanças, / não movem eles as engrenagem do Mundo? / Empresas, partidos, o sistema, ou outros, / os lucros, as partilhas, a supremacia, os solilóquios: / Ante os pilares da civilização, eis-te um grão de areia / e teus sonhos e anseios, não mais que meras abstrações”. P.C-32.
Diante de uma obra com tais características de urgência André Caramuru Aubert aponta que há nos autores a “defesa radical de tudo que é humano”. Poema “Sentido”.
“Cego, / Deliberadamente cego… / Olhos juvenis perscrutam um mundo senil
Surdo, / Equilibradamente surdo… / Vozes e apelos se quedaram no caminho
Mudo, / Escandalosamente mudo… / Já não há palavras que signifiquem / Algum sentido, ou que expliquem a loucura desumana
O choro ecoa nos escombros / E verte em lágrimas de chorume / O betume aterra o desespero / E encobre o terror
O zunido do caos: zinabre do tempo
Imundo a fundo / O mundo / Num segundo explode! P. W-41.
As “imprecações” que os autores cometem, não são aquelas amalucadas e cheias de ódios e ranger de dentes. Não. São “imprecações” que partem de um professor de literatura e crítico, e de um pedagogo e oficial da Polícia Militar, que nos traz luz, esclarecem o POR QUE? Imprecamos. Afinal “Não somos parte senão de nós mesmos, e o que procuramos é nada além de um reflexo”(?). Verso que nos remete a uma das epígrafes que abrem o volume: “Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito(…)”. Bíblia Sagrada. Romanos 12:02.
Tudo evolui inexoravelmente. E a humanidade vacila num atraso terrível! Há uma efervescência em nosso tempo porque estamos ansiosos por novas direções. O futuro da humanidade está biologicamente em sua espiritualização, pois o materialismo a que nos atiramos avidamente terminou por comprimir o espírito na matéria. Esta a “serpente do paraíso” que avassala tudo. Um sopro novo tem que dinamizar o espírito humano. Há de vir a “renovação do vosso espírito” uma espiritualidade não vaga, sentimentaloide e enfermiça, mas viril, operante, científica sim, coletiva e consciente do imenso trabalho que temos a realizar. Essa a luta mais digna que nos aguarda.
Livro: “Versos de imprecação contra o mundo” – poesias de Clayton de Souza e Witalo Lopes. Editora Penalux, Guaratinguetá- SP, 2018, 126 p.
ISBN 978-85-5833-341-2
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(* )Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, Pesquisador, e Crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações, dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens, Diversos Afins, Jornal RelevO,Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte, Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review, Revista InComunidade de Portugal, e Revista Laranja Original. //