TEMPOS DIFÍCEIS AQUELES
Por Gilberto Silos
Conheci Ettore Mignella quando morava no Bixiga, em São Paulo. Isso foi no final dos anos 60. O pai dele, imigrante italiano, era dono de uma cantina ali no bairro. Ettore, durante o dia ajudava o pai e à noite cursava Filosofia na USP. Namorava a Bacana, uma jovem baixinha, atarracada, muito sardenta, neta de lituanos. Bacana era apelido. Eu nunca soube qual era o seu nome. Muito simpática, fazia jus ao apelido que lhe deram.
Mesmo contrariando o pai, Ettore, em sociedade com um colega da faculdade, abriu um cineclube na Rua 13 de Maio. Funcionando somente nos finais de semana, a sala exibia os chamados “filmes de arte”. Por ali desfilavam Fellinni, Buñuel, Cinema Novo, Nouvelle Vague, coisas desse nível, com direito a 30 minutos de debates ao final da exibição. Vale lembrar que vivíamos os chamados “anos de chumbo” e exibir um filme de Costa Gravas, por exemplo, era cutucar a onça com vara curta.
Certo dia, encontrei o simpático casal tomando um cafezinho na Avenida Ipiranga. Estavam muito tensos. Ele havia recebido uma intimação da Polícia Federal para lá comparecer e prestar esclarecimentos. Não sabia do que se tratava e isso o apavorava. Boa coisa não podia ser.
No final daquela semana fui jantar na cantina e lá encontrei os dois, por sinal, muito tranquilos, rindo, beijando-se. Quando vi a cena concluí que estava tudo bem. Aproximei-me e pedi para me contarem o que acontecera. O Ettore relatou-me o seguinte:
O delegado da Polícia Federal recebeu-o secamente e foi logo perguntando:
_ Senhor Ettore, o que o senhor faz na vida ?
– Trabalho com meu pai numa cantina, à noite estudo Filosofia na USP e nos finais de semana tenho um cineclube no Bixiga.
– Filosofia na USP ? Huum… vou ser direto e reto: o senhor é comunista ?
– Não doutor. Cuido apenas da minha vida. Não me meto nem quero saber dessa coisa de ideologia, de política. Fico longe disso.
– Chegou às minhas mãos uma denúncia dando conta de que o senhor exibiu um filme sobre Karl Marx no último final de semana. Moço, você está se metendo numa boa encrenca. Exibiu um filme sobre esse filósofo canalha que afirmou “ser a religião o ópio do povo” e que “não se pode acreditar num Deus que quer ser louvado o tempo todo”.
– Desculpe-me, doutor, mas a segunda frase é de Nietzche.
– Isso é irrelevante senhor Ettore ! O fato é que um filme sobre Marx foi exibido, o que eu considero um ato subversivo.
– Doutor, o que nós exibimos nada tem a ver com Karl Marx. O que projetamos na tela do cineclube foi Uma Noite na Ópera, comédia com os irmãos Marx, filme de 1935, em branco e preto. Os irmãos Marx – Groucho, Harpo e Chico – eram os grandes astros da comédia americana naquela época. O líder do grupo era o Groucho Marx e sua frase mais polêmica foi: “Atrás de todo grande homem existe sempre uma mulher. E atrás dela, há sempre a mulher dele”.
– Senhor Ettore, estou satisfeito com suas explicações, porém, vou lhe dar um conselho: exiba filmes menos complexos. Algo como comédia romântica, Mazzaropi, bang bang a italiana. Não complique sua vida.
Fiquei aliviado por nada de mais sério ter acontecido com o Ettore. Assim, me despedi, mas antes lhe perguntei qual era a programação do cineclube para aquele final de semana. Meio constrangido, ele respondeu:
– Um festival de filmes do Mazzaropi.
Tempos difíceis aqueles…
2018
Gilberto, tempos difíceis aqueles e agora estamos revivendo essa mesma situação, agora com uma pitada a mais de ignorância.
Censura, maldades, falta de lógica e noção, ignorância, terraplanismo, fake news, fanatismo religioso, etc. Essa é a vibe de agora desse pessoal da quinta série.
Situação deprimente!