E LA NAVE DE FELLINI VA
Por Gilberto Silos
Tudo começa numa manhã de junho de 1914. O navio Gloria N. parte de um porto qualquer. Seria da Itália ? Provavelmente. Os passageiros embarcam cantando La Forza Del Destino, de Verdi. É um universo seleto de tipos humanos: cantores de ópera, membros da nobreza europeia, burgueses decadentes, gente excêntrica e um jornalista que documenta e narra a viagem. Essas pessoas formam o cortejo fúnebre de Edmea Tetua, a grande diva da ópera, recém falecida. Atendendo à sua vontade, previamente manifestada , as cinzas seriam lançadas ao mar, ao redor da Ilha de Érimo, terra onde nasceu.
Desse microcosmo da sociedade europeia , o jornalista vai descrevendo cada passageiro, revelando suas idiossincrasias de uma forma irônica e apimentada. Enquanto o navio segue viagem, os fatos acontecem.
Entre os passageiros há um terrível conflito de egos. E, poderia ser diferente ? Vários deles fazem uma visita à casa de máquinas. Do alto de uma espécie de mezanino, observam os operários , sujos de fuligem abastecendo de carvão as fornalhas do navio. Seus comentários, por vezes preconceituosos, sugerem uma luta de classes entre aqueles dois mundos opostos. De repente começam a desafiar-se cantando árias famosas do mundo da ópera. O exibicionismo chega ao máximo, nesse desfile exacerbado de egos.
O enredo é ambientado nos dias que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Ele nos remete a um mundo pleno de glamour e fantasia, prestes a desmoronar com o banho de sangue que viria em seguida. A Belle Époque estava com seus dias contados. Um outro mundo emergiria daquele caos.
O conflito já começara e o navio resgata alguns náufragos sérvios, cujo barco fora torpedeado. Os passageiros protestam porque não admitiam conviver com aquele bando de miseráveis a bordo. Mas, não fica só nisso. Durante viagem ainda são recolhidos um turco e um rinoceronte, encontrados num barco à deriva.
Surge um navio de guerra do Império Austro-húngaro exigindo a entrega dos sérvios. A recusa resulta no bombardeio e afundamento do Gloria N. e na morte dos passageiros.
O naufrágio tem um significado simbólico. ´Trata-se de um mundo que sucumbe e desaparece. Depois da guerra a Europa passaria por profundas mudanças geopolíticas, econômicas e sociais. Do navio salvam-se apenas, num bote, o jornalista e o rinoceronte.
O que significaria esse paquiderme ? São várias as interpretações que se lhe pode dar. Talvez represente o que surgiria depois do conflito: o comunismo, o nazismo e o fascismo, com suas ideologias que arrastaram multidões a um fanatismo primitivo, violento e cego. É a ideia que Ionesco, décadas depois, retrataria em sua peça teatral O Rinoceronte. A verdade, é que a Primeira Guerra acabou parindo esses malévolos rinocerontes.
Esta é , em síntese, a narrativa do filme E La Nave Va, dirigido por Federico Fellini em 1983. Nela, Fellini recorre a metáforas , a crítica social, e usa recursos de metalinguagem. Foi um dos seus últimos grandes filmes. Para muitos críticos de cinema , é a sua obra-prima absoluta. Vale a pena ver.
2018