Arte Literatura Ronie Von R. Martins

Sobre velhos e crianças

Sobre velhos e crianças
13/06/20

 

Sentado o velho larga os olhos fatigados sobre a ação do novo. A criança. A força que dela irradia. E pensa. E sofre. Pelas frestas de suas rugas desertas. Pelas frinchas de seu corpo, pelas dobras dolorosas de sua carne ele sofre.
Na cabeça do velho ainda sente o corpo antigo correndo por ruas hoje modificadas. A lembrança é boa e má. Faz sorrir e sofrer pensa o velho.
Estão os dois ali. Sentados um frente ao outro. Um preso na prosaica recordação de uma vida toda, o outro captado pela tela azul de um celular. Presos os dois na casa. Quarentena imposta. Os perigos. A dor. A morte. Os números macabros que não cessam. Então os dois.
O menino olha o rosto enrugado e sorri. Estaria conformado? Estaria satisfeito? Por acaso não conhece a leve brisa que levanta poucos fios de cabelo da gente e nos faz sorrir? Será que ainda não teve esse prazer?
De escalar uma árvore até o topo. E comer laranjas lá em cima…brincando de enroscar as cascas nos galhos distantes? Ainda não?
Estar preso. Pensa o velho. É uma merda.
Ainda lembra do banco na praça. É pouco. Mas é um banco. É um espaço de conexão com o mundo. Cruzar as pernas e deixar o trânsito atravessar o corpo. Fechar os olhos e deixar as vozes inundarem sua voz. Ouvi-las todas como música, como um mantra de vida. Deixar as folhas das árvores caindo, tocarem seu corpo. Os cães lamberem suas mãos. Perder-se pelos caminhos constantes das formigas. Achar-se nos voos dispersantes dos insetos que vão e vem. E alguns ainda zombavam do seu banco na praça. Um mundo inteiro? Não sabiam? Não percebiam as possibilidades?
Mas agora ele estava ali. Vendo a criança que não o via. Não poder sair. Não poder sair para a morte. Ás vezes ele pensava que tinha esse direito. Sair e encarar aquela merda. Ainda tinha um grande número de palavrões atualizados para excomungar a morte. Vinha treinando. Sorria. É claro que seria levado. Mas escandalizaria a danada. Quem ela pensava que era.
Mas e o jovem? Pequeno e preso. Sem árvore, sem formigas, sem insetos voadores. Um pequeno sem o espaço do corpo, para o corpo.
Agora o menino se acomodava na janela, telefone na mão. Olhava distante. O portão. Fechado. O muro do pátio. A árvore antiga. O balanço. O cão que esburacava o terreno. E logo voltava os olhos para o aparelho, mais imagens, mais música mais tudo de nada…
E havia um silêncio entre os dois. Abismo. O velho queria saltar. Xingando.
A criança estava calma. A alma. De cada um na janela.
A televisão seria o porto seguro da criança. Desenhos, risos, entretenimento… Mas e o velho que já azedara os olhos para os aparelhos de luz e som? O velho queria o ar. Mas o ar era o perigo.
Sofrer então, pensava. Que coisa! Quase não acreditava. Imaginara alguma vez que depois de tão velho seria preso? Precisaria estar preso?
A vida, diziam. E ele pensava na morte. Tão perto e tão chata.
Mas olhava a criança. Tão pequena e cheia de tudo.
Queria abraçar o pequeno. Mas era meio arredio aos sentimentos. Então chorou uma lágrima para dentro. Coçou um olho como se fosse um cisco.
Talvez ainda desse tempo para ambos visitarem as árvores, observar as formigas, acompanhar os voos dos insetos fugidios.
Talvez ainda desse tempo para sentarem no banco da praça, fechar os olhos ouvir todas as vozes e forças do mundo girando ao redor.

Deixe uma resposta