O milagre que eu não percebo
Nestes estranhos tempos de pandemia me vejo, vez por outra, ensimesmado, mergulhado em lembranças de experiências passadas. Episódios ocorridos em minha vida, do doloroso ao cômico, passando pelo ditoso e patético. Acredito que tenha vivenciado muita coisa, talvez um pouco de tudo. Agora minha vivência é no momento presente. Um dia de cada vez. Não sei de outra realidade a não ser esta. O futuro é uma densa neblina. Não vale a pena dedicar meu tempo a exercícios de futurologia.
De tudo isso, ainda permanece a esperança. Não é bom perdê-la de vista. Sem ela é quase impossível um presente saudável. Procuro, também, outros caminhos para mantê-lo assim. Um deles é a leitura, meu refúgio predileto. Neste mundo pandêmico, o que seria de mim sem os livros? O que seria da vida sem esses companheiros de todas as horas? Falo por mim, que tenho o hábito da leitura desde a meninice.
Neste momento, meu companheiro da hora é o ”Primeiras Estórias”, de Guimarães Rosa. São contos em que o autor aborda a condição humana e as experiências dela decorrentes. Nessas narrativas Guimarães Rosa dá plasticidade e revitaliza a língua com seus neologismos e regionalismos. Encantamento e prazer não me faltam em degustar expressões como “pé-tintin”, ”lugubrulho”, “cabismeditado”, “não-tais”, e muitas frases de construção artesanal, por assim dizer. Dos tipos humanos descritos em cada conto, vários lembram pessoas com as quais convivi na minha infância e juventude, vividas em cidadezinha do interior. Cada uma com a sua loucura ou aparente lucidez.
Em 1998, Pedro Bial dirigiu o filme ”Outras Estórias”, inspirado em cinco contos do livro. O filme acabou esquecido, como tantas obras de boa qualidade, neste país onde arte é sinônimo de subversão.
Estes dias são de nebulosas perspectivas. Cada qual espera ou procura um milagre para tentar sobreviver. No conto ”O Espelho” encontro uma pista: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.”
Deve ser isso mesmo. Acontece algum milagre em minha vida e eu não consigo percebê-lo.
Por Gilberto Silos