Conheci o Edugair ator em uma reunião há quase dez anos atrás. Sua figura era impressionante: ele era alto, grande, ocupava muito espaço, tinha uma voz forte pra cacete, exalava um cheiro de alho cru e sempre andava com uma mochila cheia de misteriosos e importantes artefatos: panos, galinhas de borracha, brincos, miojos, relógios de bolso etc.
O Edugair tinha o poder de invadir os sentidos: quando ele chegava, nunca passava despercebido.
A primeira vez que vi o Edugair, foi em uma reunião do Fundo Municipal de Cultura em meados de 2012 ou 2013. A lei do fundo ainda não existia e estava sendo escrita por um grupo de artistas, diletantes, oportunistas e similares. O compositor Boi me convidou para uma reunião que aconteceu no Bola de Meia. Estávamos todos sentados em roda e a reunião já tinha começado. Ao meu lado, uma cadeira vazia. Quinze minutos de reunião e chega o Edugair, tumultuando tudo ao redor. É claro que ele vai escolher a cadeira vazia pra sentar.
O Edugair senta. E lentamente vai se aproximando de mim. Com a visão periférica, percebo que ele fica toda hora olhando pra minha cara. E vai se aproximando. Se aproximando. Até que ele encosta a perna dele na minha. E vai fazendo peso. Fazendo peso. Eu pensei: “porra, quem é esse cara com cheiro de alho? Fica me encarando e encostando a perna em mim. Porra, que cara esquisito”. Me afastei (na medida do possível, pois como eu disse antes, o Edugair ocupa espaço) e tentei ficar de boa. Quando a reunião acabou, o Edugair perguntou o que eu fazia. Disse que era músico. Aí ele responde algo como “mas você parece alguém do teatro”. Até hoje não entendi essa resposta.
Pelo cheiro de alho cru, pensei que o Edugair era cozinheiro. Mas o Boi me disse que ele era ator. Fiquei imaginando as peças nas quais o Edugair teria trabalhado. Anos mais tarde, a escritora Meire Pedroso me disse que o Edugair era o ator mais genial que ela conheceu, que ele sabia tudo de Brecht, que ele destruía os sabichões do teatro na argumentação e nos conhecimentos. A relação do Edugair com o teatro parece mesmo ter sido única. Ouvi um relato de que, na década de 90 (sempre a década de 90, a década dourada do folclore joseense), o Edugair participava de uma oficina de teatro na Fundação Cultural. O monitor estava impaciente com as interferências e interrupções do Edugair e, em um dado momento, o expulsou da sala. Diz a lenda que Edugair saiu da sala, mas posicionou o rosto em uma janelinha e ficou assistindo a aula de lá. O monitor ficou tão desconcertado que chamou o Edugair de volta. Conheço também um outro relato, no qual o Edugair estava dormindo durante uma oficina. O professor o acordou e falou: “Pô, Edugair, você está dormindo no meio da aula!”, ao que Edugair responde, de olhos fechados: “não, não, pode falar que eu estou absorvendo tudo pelo ar” (gesticulando com as mãos).
Como o Edugair invadia, as pessoas o ignoravam. Lembro, em uma das reuniões do Fundo, de presenciar o Edugair estender impacientemente três folhas de papel amassado, com letras grandes escritas com giz de cera vermelho. Ele falava (gritava): “Jaaaaaackie, olha o meu projeeeeeeeto. Jaaaaackiee, o meu projeto”. Durante a reunião inteira o Edugair insistiu para que lessem o projeto dele, mas ninguém deu bola. No final da reunião, ele falou entristecido, com um pouco menos de volume na voz: “Jackie, você nem leu meu projeto”. Inspirado nesse evento, eu compus a peça experimental “Jackie, você nem leu meu projeto“, executada pelo coletivo Tempo-Câmara em 2016:
O Edugair era foda. Ele incomodava, é claro. Já o vi ser vaiado por multidões de empreendedores da cultura e cirandeiros. Eu achava o Edugair uma figura meio deslocada, mas naquela época já tive a intuição de que esse deslocamento seria fundamental pro juízo de arte que eu desenvolveria depois. De certa forma, me sentia deslocado também, apesar de não sair por aí encostando a perna nos outros, apesar de não dar papéis amassados pros outros lerem. Eu ia na reunião do Fundo e não me sentia parte daquilo direito. Participava dos eventos e me sentia um intruso conversando com a galera. Nunca consegui me encaixar, não tinha saco pra forjar carisma, não queria ser agradável – só conseguia ficar confortável nesses lugares enchendo a cara. E eu via o Edugair ali, resiliente, simplesmente existindo na invasão, impondo seu deslocamento, confortável em edugair.
Ele estava em todas. Em todos os eventos em que fui ou participei na cidade, o Edugair marcava presença. Outras pessoas me contaram que ele era assim mesmo, ia em tudo, estava sempre no SESC, na Fundação, sempre enchendo o saco, tocando o puteiro, fazendo a maior zona, impassível em relação à rejeição e ao desprezo dos outros. Sabemos bem que a onipresença é um atributo importante para fazer parte da mitologia joseense.
O Edugair incorporava algo da cidade que se opunha às narrativas de empreendedorismo cultural, tecnologia, contatinhos, esqueminhas, panelas, cirandas, uma mão lavando a outra e outras besteiras que estavam em moda na época (agora o negócio é inventar que SJC é uma “capital da cultura”, seja lá o que isso signifique). Pode-se mesmo dizer que o Edugair é anti-indústria, anti-empreendedorismo cultural, antiproponente, anticontrapartida. Não é à toa que o mataram. Um maluco daqueles edugaindo a cidade toda pode ser algo intolerável para bolsonaristas, reacionários, capitalistas do amor livre, enrustidos, donos da bola e homens de bem. As circunstâncias da morte do Edugair são mais ou menos misteriosas. O que me contaram é que ele foi encontrado no centro da cidade, bastante machucado e com sinais de espancamento. Ficou em coma durante algum tempo e depois morreu. E a Jacquie ficou sem ler seu projeto.
Acredito que uma ontologia do sujeito só pode ser feita após sua morte. Só dá pra dizer “É” quando cessa o devir. E o que é o Edugair? O ponto de início para começar o desenho do contorno do Edugair é a canção “A cidade que matou Edugair”.
Também podemos recorrer ao verbete “Edugaísmo” publicado no volume 2 da revista ABATE:
EDUGAÍSMO:
- Dissonância social impossível de ser medida ou transposta para critérios quantitativos.
- Ismo associado ao verbo edugair.
- Ismo associado ao substantivo próprio Edugair.
- Invasão enquanto acontecimento. A invasão pura invade tanto o público quanto o privado; aquele que edugai, invade visualmente, invade nos sons, nas palavras, nos cheiros, nos espaços, invade todos os campos em que há um recipiente ou um vazio. No edugaísmo, dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço: se o corpo que sofre a invasão tentar manter sua posição, ele coexistirá com o corpo edugaisante em um mesmo ponto do espaço. A ficção do Big Bang descreve o edugaísmo da matéria sobre o espaço. A loucura é uma forma de edugaísmo que invade a civilização; aquele que edugai o faz tentando obter counterspell com fireball. O edugair é raio, raio, raio, raio. Depois choque, choque, choque, choque. Depois esfera de raios, esfera de raios, esfera de raios, esfera de raios. Obviamente, o edugair incomoda, pois ele não existe para habitar os Estados; ao invés de habitar, ele invade. Mas não invade para possuir, invade apenas para invadir. O edugaísmo é a invasão enquanto acontecimento, invasão sem território; o Império Romano nunca edugaiu a Europa; nem Portugal edugaiu o Brasil, pois esses invadiram para estabelecer domínios, enquanto o edugaísmo é a invasão para existir. O humor edugai o bom senso; o zueiro edugaiu a reunião; a Arte edugai a Cultura e o cavalo edugai o tabuleiro. O cavalo é a peça mais imprevisível, portanto mais potente do tabuleiro.
- Cavalo do tabuleiro de xadrez.
Fonte: https://www.academia.edu/23226024/ABATE_2
Esse verbete nos dá mais informações para construir uma ontologia do Edugair. Ouvi relatos de pessoas próximas ao Edugair de que, em uma vida passada, ele havia sido discípulo de Diógenes, o cínico. Nesse sentido, podemos pensar que a ética edugaisante seria uma ética cínica. Faz todo o sentido: tal como Diógenes, Edugair também vivia e era tratado como um cão em São José. Não é à toa que Edugair, mesmo depois de morto, faz uma participação na canção “SJC” de Akira Umeda recitando, na parte final do fonograma, o poema “Boa noite São José”.
Mas como isso pode acontecer? É simples: essa cidade de homens bons mata o Edugair ator, mas é incapaz de extinguir o conceito. O que morreu foi apenas o ator, um sujeito que atua, que produz ação edugaisante, o agente do acontecimento, o que age e edugai. Mas a duração Edugair está aí desde Diógenes, e não morreu com o Edugair-ator. Alguns teóricos chamam essa duração de neocinismo. Mas sabemos que o termo correto para descrevê-la é “Edugaísmo Hegemônico”. O rap lento de Edugair na canção do Akira é uma prova científica da existência dessa duração.
A coleção de fotos compilada pelo Joka Faria também é fundamental para a compreensão da figura do Edugair Ator:
Além dos raros documentos e homenagens conservados pelo ator, cineasta e cancionista Sérgio Ponti:
Penso que estou para o Edugair como Paulo está para Jesus, Platão para Sócrates, como os estóicos estão para os cínicos. Eu sou aquele cara cujo trabalho é racionalizar a loucura, estragá-la um pouco, tomá-la para si, sistematizar suas forças em qualidades e categorias, transpor o seu folclore para o campo mitológico, para que, futuramente, tudo vire um Poder. Então as minhas intenções não são boas, nem pro oprimido, nem pro opressor. O Edugaísmo Hegemônico é um neocinismo que me interessa.
Imagina só: você junta sua banda, vai pra rua e toca. Foda-se a autorização da cidade. Você pega seus amigos íntimos e faz um Grand Rendezvous nas ruínas escondidas do Parque da Cidade. Foda-se a autorização da cidade. Você faz seus malabarismos no semáforo. Foda-se a autorização da cidade. Você encena uma peça no Vicentina Aranha. Foda-se a autorização da cidade. Você fica pelado na Praça do Sapo. E foda-se a autorização da cidade. Você constrói uma casa no Banhado. E foda-se a autorização da cidade. Você vai fumar maconha na praça Ulisses Guimarães. E foda-se a autorização da cidade. Você entra no Jardim Apolo sem mostrar o RG. E foda-se a autorização da cidade. Você ocupa os espaços públicos. E foda-se a autorização da cidade.
Eu tenho certeza de que era isso o que estava escrito no projeto do Edugair que ninguém quis ler.
Uma lembrança singela que tenho do Edugair foi de quando conversei com ele, pela primeira vez – foi lá no Cine Santana, eu estava com o pessoal de sempre e ele se aproximou do grupo e me ofereceu uma laranja, na verdade mexirica e para descascá-la, usou um guardanapo para não ficar com o cheiro na mão. Achei fantástico e também faço isso agora. Gostei do jeito dele na hora.
Por onde tem andado Beth.
Por entre as palavras em espiral!
Bruno, arrasou!
Como sempre mostrando São José dos Campos, nua e crua…
Tem um vídeo do Joka Faria conversando com Edu Gair, coloco aqui:
https://youtu.be/qNOD93KLC7o
Conheço histórias únicas sobre Edugair,,,, Com Zé Celso,,, com comissão do teatro,,, com diogenes e Festivale,,,, Sempre sendo Edugair!!!
Sem palavras!
Eu sempre o encontro nos meus sonhos.