Crítica: “Quo Vadis, Aida?” (Bósnia e Herzegovina, 2020)
Excelente longa-metragem bósnio, um dos favoritos ao Oscar de Filme Internacional, provoca incômodo ao mostrar semelhanças entre situações de guerra e da pandemia no Rio
Por Bruno Giacobbo -18 de fevereiro de 2021
Vocês lembram o que estavam fazendo, no dia 13 de março de 2020, quando foram tomadas as primeiras medidas oficiais com o intuito de tentar controlar o avanço do Covid-19? Eu lembro. Era uma sexta-feira. Estava em uma feira cervejeira, na Barra. Discretamente, comemorei que no sábado, graças ao lockdown decretado pelo governador, não precisaria acordar cedo para ir à pós-graduação. Quase um ano depois, ainda não vivemos como vivíamos antes. O Réveillon e o Carnaval, duas das maiores fontes de renda do Rio de Janeiro, foram cancelados. No dia a dia, como medida de segurança, as pessoas não podem sair sem máscara. Nesse ínterim, mais de 31 mil fluminenses tiveram suas vidas ceifadas. Ou seja, para as famílias desses cidadãos, levados abrupta e precocemente, nada será como antes, nada voltará ao normal. É uma situação que me faz sentir como se estivesse dentro de um filme de guerra.
Dirigido e roteirizado pela cineasta Jasmila Žbani?, “Quo Vadis, Aida?” é um filme de guerra que representa a Bósnia e Herzegovina no Oscar 2021. Ainda inédita nos cinemas cariocas, essa esmerada produção retrata o “Massacre de Srebrenica”, um dos mais lamentáveis momentos da “Guerra da Bósnia” (1992 a 1995). Nessa cidade, localizada no leste do país, entre os dias 11 e 25 de julho de 95, segundo dados oficiais, 8373 bósnios mulçumanos, entre jovens e velhos, foram chacinados por paramilitares sérvios comandados pelo general Ratko Mladi?. No centro da trama temos Aida Selmanagi? (Jasna ?uri?i?), uma professora que trabalha como intérprete para os militares holandeses que atuam na Tropa de Paz da ONU.
Apesar de optar por um recorte temporal bastante diminuto, a cineasta bósnia consegue evocar uma época pregressa, anterior à guerra, por meio de algumas poucas imagens que caracterizam as lembranças da protagonista e, principalmente, através de palavras e afetos. Estes dois últimos artífices aparecem a partir da entrada em cena de Nihad (Izudin Bajrovi?), Hamdija (Boris Ler) e Sejo (Dino Bajrovi?), respectivamente, marido e filhos de Aida. Inicialmente, eles estão fora da base holandesa onde milhares de bósnios mulçumanos se refugiaram. No entanto, entre um serviço e outro de tradução, ela consegue colocar sua família para dentro. E é aí que temos a chance de conhecê-los melhor.
Antes da guerra, Nihad era diretor de escola, talvez, a mesma em que a personagem principal dava aula. Um dos rapazes, de acordo com palavras da própria mãe, atraía a atenção das meninas. Era bastante popular. Este mesmo rapaz completaria em breve o ensino médio. Já o outro só pensava em música. Seu sonho era se tornar um astro pop internacional. Nihad tem uma agenda. Nela, há mais de três anos, ou seja, um pouco depois do começo da beligerância, o homem anota todo santo dia os acontecimentos vividos pela família. É uma espécie de diário para que eles não se esqueçam de nada e tirem lições, uma vez que a ideia é sobreviver e um dia voltar a viver como viviam antes. Acontece que para milhares de bósnios nada será como antes, nada voltará ao normal.
Nesse quase um ano de pandemia, ainda que bombas não tenham despencado sobre nossas cabeças, que vizinhos não tenham sido fuzilados, episódios, infelizmente, comuns em conflitos como a “Guerra da Bósnia”, a sensação de perda de liberdade devido ao Covid-19 é semelhante. De uma hora para outra, nossas vidas mudaram e passamos a sentir o gélido bafo da morte. E se essas coisas não fossem suficientemente fortes para criar a sensação de estar dentro de um filme de guerra, a coincidência entre o diário de Nihad e o caderno no qual minha mãe anota quase todos os pormenores do nosso convívio familiar, ao longo do período de confinamento, soou como um tiro de misericórdia.