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CINECLUBE: Tela privilegiada do filme

É inconcebível a existência do cineclubismo como atividade civilizatória, desassociada da difusão da cultura cinematográfica e do audiovisual, da militância social, sem o filme como instrumento do fazer cineclube, da prática do debate após sua exibição. É na tela que o filme ganha perenidade. Os cineclubes são organismos vivos da sociedade, que compreendem o público como sujeito ativo e o filme como forma de expressão identitária do povo, fonte de formação, informação e entretenimento. Cineclube é um lugar de criação, de ver, ouvir, sentir e debater a sociedade através do filme.

O cineclubismo do século XXI, permanece com as características essenciais, desde o seu surgimento na primeira década do século XX. No entanto, com o surgimento do cinema digital, uma nova atribuição passou a ser incorporada aos seus afazeres: a criação associada a realização audiovisual.

Os cineclubes surgiram na França, antes mesmo do cinema se afirmar como linguagem capaz de contar uma história. Os esforços dos pesquisadores e intelectuais para determinarem um marco referencial, tem exigido esforços bastante meticulosos dos interessados no tema.

Em 1913, uma organização filantrópica de tendência anarquista e de origem espanhola, radicada na França, realizou o filme “A Comuna de Paris”. Eles anunciaram, exibiram, debatem o filme com a presença dos realizadores e de participantes da comuna e nominaram a atividade de “Cineclube do Povo”. Seus propósitos eram contribuir com a formação da classe operária. Recentemente a Federação Portuguesa, adotou o dia 14 de abril, como dia do cineclubista de Portugal, em homenagem a criação do primeiro cineclube em Paris, em 1907, por Edmond Benoit-Lévy, (https://bit.ly/3eIySBR, pg. 7), abrindo o primeiro capítulo da história do movimento cineclubista, atividade fundamental na cultura do século XX.

A partir de então, os cineclubes ganharam espaço, primeiro na Europa e depois na América Latina. No Brasil em 1917, no Rio de Janeiro, um grupo de amantes do cinema, assistiram filmes nos Cines Íris e Pátria e depois se dirigiam a um lugar chamado “Paredão”, para discutir o filme. No entanto a criação do “Chaplin Club”, também no Rio de Janeiro, em 1928, ganhou relevância em função do registro de suas experiências.

Em 1940 é fundado o “Clube de Cinema de São Paulo”. Sua primeira atividade foi proibida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, do Estado Novo. O clube voltou a funcionar em 1946, e de suas atividades surgiu a atual Fundação Cinemateca Brasileira, atualmente na UTI, em profundo estado agonizante.

A partir da década de 1950 em diante, as atividades dos cineclubes se tornaram mais frequentes no país, foram criados vários deles em diversos Estados, influenciados pela ação da igreja católica e das universidades. Ainda na década de 50, surge a primeira entidade de representação dos cineclubes, marco do que hoje identificamos como Movimento Cineclubista Brasileiro. Em 1959 é realizada a primeira “Jornada Nacional de Cineclubes”, congresso que serviu e ainda serve para os cineclubes avaliarem as atividades do ano anterior, e estabelecer novas diretrizes para o período seguinte. Já foram realizadas 30 edições da Jornada.

Na década de 1960, os cineclubes vão se afastando das atividades contemplativas, voltadas para a discussão estética do filme. Se proliferam pelos movimentos sociais, passam a discutir a sociedade por meio dos filmes. Quase toda a primeira geração do “Cinema Novo”, são oriundos dos cineclubes. Paulo César Sarraceni dizia que a “Revolução do Cinema Novo” nasceu dentro do cineclube da FAFI – Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro. Nesta mesma década, os cineclubes são definidos pela Lei 5.536, de 21 de novembro de 1968, em 13 de dezembro do mesmo ano, com a edição do AI-5, Ato Institucional nº 5, as atividades dos cineclubes foram proibidas.

Reorganizados em 1974, os cineclubes retomaram suas atividades sob a Ditadura Militar em fase de acentuada repressão. Afeitos a militância política, os cineclubistas posicionaram contra a censura, se organizaram nas periferias, no campo, nas cidades, nos sindicatos, nas comunidades eclesiais, nas associações recreativas e esportivas das universidades, criam a Distribuidora Nacional de Filmes para cineclubes – Dinafilme. Filmes, projetores, telas, cartazes, cineclubistas eram apreendidos e fichados no DOPs, como “Agitadores Comunistas”. Alguns optaram pela guerrilha, sequestraram avião, foram exilados.

Por duas vezes a Dinafilme foi invadida pela Polícia Federal e apreenderam mais de 90% dos filmes. Mesmo assim, os cineclubes criaram um circuito de exibição, lançaram filmes e chegaram a pagar a produção de alguns deles. Participaram da campanha da Carestia, da Anistia, Diretas-Já.

No final da década de 80, com o país retornando ao Regime Democrático, suas entidades entraram num longo período de hibernação, se rearticularam em 2003. Em sua primeira fase, no governo Lula, pela primeira vez o Estado acena para os cineclubes, políticas públicas voltadas para o setor cultural, possibilitaram ao setor, acesso aos bens estatais e os cineclubes, como pólvora, voltaram a cena cultural do país.

Ironicamente, a partir do segundo governo Dilma Rousseff, apesar de sua formação cineclubista, a liderança foi incapaz de aprumar o leme e o Movimento perdeu unicidade.

No final de 2019, durante a realização da 30ª Jornada Nacional de Cineclubes, em Viçosa/MG, a Diretoria atual assumiu o comando do leme e mal tomou posse, o mundo foi sacudido por uma pandemia, modificando o comportamento social planetário. No entanto à atividade cineclubista permanece viva na memória do Cinema Brasileiro, com substantivos, adjetivos e verbos que os qualificam e legitimam sua contribuição para a cultura do país.

Vivemos tempos difíceis, mas poucas vezes o terreno foi tão propício como agora para a afirmação da atitude cineclubista. O debate é condição sine-qua-non na essência de um cineclube. Nunca se produziu tanto cinema como atualmente e nunca o acesso ao filme foi tão favorável como agora. Um pendrive no bolso, uma distribuidora na mão.

Os cineclubes estão na base piramidal da sociedade brasileira, conversam direto com o público, aguçam no espectador, instigam sua reação crítica.

Desde que a pandemia, Covid19, se instalou e vem ganhando corpo, tem matando corpos pelo país afora, setores da cultura interromperam suas atividades, parcial ou totalmente. Para parcelas dos cineclubes não foi diferente, mas não o suficiente para interromperem suas atividades, pelo contrário, os cineclubes estão mais vivos do que nunca. em pleno pulmões gritam contra o negacionismo, lutam pela educação, pela ciência, pela vida.

É um movimento que se reinventar com capacidade de reagir, recriar alternativas de exibições online, vem se apropriando de outras formas de difusão e debates. Novas telas se abrem em tempos virtuais e nos transportamos para um novo modo de cineclubar, adaptando, respeitando o momento.

O cinema é uma das formas de entretenimento que mais faz falta durante a pandemia, segundo pesquisa divulgada pelo movimento #JuntosPeloCinema, em 15 julho de 2020, para 75% dos entrevistados, o cinema será prioridade no retorno das atividades pós-quarentena.

As atividades virtuais dos cineclubes, similar ao período da ditadura no Brasil, vem sofrendo ataques de hackers negacionista, fato que não nos afugenta.

O cineclubismo vem superando dificuldades ao longo do tempo e acreditamos: enquanto houver filmes sendo realizados, haverá sempre um cineclube!

Diogo Gomes dos Santos

Cineclubista/Cineasta/Historiador

Mestrando em Estética e História da Arte/USP

Diretor Tesoureiro do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros

Colaboraram:

Tetê Avelar

Professora e Presidenta do

Conselho Nac. Cineclubes Brasileiros

Joseane Alfer

Desing/Diretora de Arte

Doutorando em Estética e História da Arte/USP

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