Filipi Gradim: meu nome agora é Zé Pequeno
Por Filipi Gradim -27 de abril de 2020
Mais do que de imagens, o cinema é um regateio de sabores. Não se lhe fixou o epíteto de sétima arte em vão. Conforme amadurecemos, igualmente amadurece nossa experiência estética. Daí nosso paladar se apura e podemos degustar melhor de uma obra de arte. O cinema proporciona isso, talvez, melhor do que a música ou a literatura. A cada leitura de um romance ou audição de uma sinfonia, a percepção se amplia, galga outros andares, sobe uma oitava na escala de valores. Digo que o cinema me parece mais frutífero nesse aspecto porque reúne, em sua forma, o que a literatura possui de plasticidade e o que a música possui de sensações.
Depois de praticamente duas décadas, ao rever “Cidade de Deus” (2002) de Fernando Meireles, me deparei com a experiência da degustação renovada de uma obra fílmica. Adaptada do livro homônimo de Paulo Lins, a película de Meireles é genial. Na época em que assisti pela primeira vez a obra fílmica me soava aborrecedora, principalmente pelo exagero do recurso narrativo que me dispersava dos conflitos e me fazia questionar a razão de o livro ter virado filme e se não era melhor que o livro permanecesse livro. Tentei reconsiderar aquela opinião, conversando com amigos cinéfilos, mas só consegui esse feito anos depois, amadurecido.
A genialidade que Meireles imprime a esse que é um dos melhores filmes do cinema de retomada no Brasil se encontra em algo que não é narrativo no nível literário ou literal; logo, se restringe à narrativa puramente imagética. A agilidade da câmera, nervosa e trêmula em muitos momentos ou às vezes fora do prumo, os jogos de flashback, os cortes precisos, as tomadas sob perspectivas diversas, as convincentes atuações de Leandro Firmino, Douglas Silva e Jonathan Haagensen. Todos esses fatores narram o filme melhor que o personagem Buscapé – e era essa verborragia, essa literalidade que me fazia desgostar da obra. E ainda acredito que ela funciona com adequação na literatura e não no cinema.
Revi o filme pouca semana faz. Por sorte, encontrei nele um conteúdo filosófico que me escapou nas primeiras experiências. Mesmo porque a forma fílmica se destacava mais e, por isso, me afastava da percepção do conteúdo e me prendia ao incômodo de assistir a uma obra cinematográfica tão verbalizada na narrativa. No conteúdo de “Cidade de Deus” esbarrei com o pensamento do filósofo francês Étienne de la Boétie (1530-1563) e me atinei para um sabor do filme que ainda não tinha degustado. Tanto melhor! Assim, deveras, me conciliei com a obra.
Além de apresentarem uma abordagem sociológica da violência, Meireles e Lins, cada qual por sua via artística, provocam (talvez sem pretensão) o espectador/leitor atento à reflexão filosófica. No entanto, tal reflexão não se realiza a contento se não dispusemos de um bom referencial, como no caso de Boétie. A análise sociológica difere em muito da filosófica porque a sociologia não cria nem trata de problemas; ela detecta situações e traça linhas fronteiriças; e, dentro desse espaço segmentado, observa causas e condições. A filosofia, por seu turno, é semeadora de problemas, cobrindo signos e evidências com a capa do conceito e do discurso.
Convém abreviar a trama de “Cidade de Deus”, antes mesmo de arrancarmos daí algum conteúdo filosófico. O livro de Paulo Lins conta com mais de quinhentas páginas, fruto de uma longa pesquisa antropológica de sete anos que o autor, ex-morador do bairro de Jacarepaguá, realizou. É, na verdade, uma epopeia contemporânea que tenta abarcar o corpo da totalidade histórica de uma das comunidades periféricas mais violentas do Rio de Janeiro. A narrativa de Paulo Lins apresenta o que o próprio autor cunhou como “neofavela”, quer dizer, uma visão antirromântica da realidade periférica, desobrigada do velho clichê samba-boemia-poesia. O olhar de Paulo se aproxima bem mais do feitio naturalista de Aluízio de Azevedo do que do feitio idealista de Álvares de Azevedo. Por isso, a narrativa é apinhada de episódios brutais e grotescos, em que os personagens se sujeitam ao fatalismo do crime, ao sexo animalizado e às condições precárias do local. Além do mais, o que está em jogo na obra é predomínio do darwinismo social.
A narrativa inicia nos anos 60, com a ocupação do local, graças à migração de centenas de famílias oriundas de comunidades vitimadas por enchentes ou desapropriações. O crime é o personagem central da obra, tanto literária quanto fílmica. Lins e Meireles enfatizam-na sob dois ângulos: o crime enquanto reparo da injustiça social e o crime enquanto imposição de poder. Nos anos 60, o crime é cometido “romanticamente”. As quadrilhas que surgem o fazem à revelia da necessidade premente de se arranjar financeiramente. A necessidade de ser feliz, de oferecer o mínimo de conforto à família, conduz o “trio ternura” (Cabeleira, Marreco e Alicate) a cometer delitos dentro e fora da favela que, a bem dizer, são mediados pela ação truculenta da polícia.
Nos anos 70/80, com o desenrolar da narrativa, o crime transpõe a fronteira da delinquência juvenil e alcança o patamar de organização facciosa. É propriamente nessa parte que me concentro para traçar a relação entre a criminalidade e o pensamento crítico de Boétie. Zé Pequeno, o mais temido bandido da Cidade de Deus toma forma nesse período. E se Buscapé afirma no início do filme que, na comunidade, “se o correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, é muito por influência da tirania imposta por Zé Pequeno que a situação ganha esse teor de periculosidade. Assim, a pergunta de Boétie, aplicada a tal contexto, é: como nascem os tiranos?
Na obra “Discurso da servidão voluntária” (1553), Boétie nos alerta para o risco de uma declaração feita por Ulisses, em “Ilíada”, que diz o seguinte: “não é bom ter vários senhores. Um só seja o senhor, um só seja o rei.” Boétie retruca Homero em seu argumento: “o poder de um só, quando adota o título de soberano, torna-se duro e irracional”. Daí constitui-se “a maior desgraça estar sujeito a um soberano de cuja bondade nunca se pode ter certeza e que sempre tem o poder de ser mau quando quiser.” A tirania se define, então, por ser um modo de governar que supõe ser o soberano modo de empregar a força sobre uma comunidade qualquer.
Grandes tiranos da história como César, Napoleão, Nero, Hitler ou Idi Amim Dada influíram diretamente ou em escalas nacionais ou em escalas globais. Zé Pequeno foi tirano em escala local, comunitária, expandindo comando por quase todos os pontos de comércio ilegal drogas, as “bocas-de-fumo”. Na Cidade de Deus o crime verteu a forma de delinquência para facção em função de outros criminosos (Ari, Zé Miúdo, Pardalzinho, Cabelo Calmo, Cenoura). Havia, além de disputa e concorrência, uma circulação sazonal na chefia dos pontos, por ocasião das trocas de tiros e de traições entre “amigos”. Mas foi com Zé Pequeno que a tirania se impôs.
Segundo o relato de Buscapé, Zé Pequeno “sempre quis ser o dono da Cidade de Deus” e, portanto, ser o único e soberano senhor do tráfico. Uma das cenas mais emblemáticas do filme é a invasão de Zé Pequeno à “boca dos apês”, dominada pelo Neguinho. “Porra, Dadinho! Como é que tu chega assim na minha boca?”, questiona Neguinho. “Quem falou que a boca é tua, rapá?”, retruca Zé Pequeno. “Entre um tiro e outro, Dadinho cresceu”, afirma Buscapé e, para reforçar essa fala, Zé Pequeno recusa seu passado delinquente, de “bicho solto”: “Dadinho é o caralho! Meu nome agora é Zé Pequeno!” E assim toma a “boca do apê “e domina a área.
Boétie mostra que a zona de influência responsável pelo domínio tirânico, ou seja, que o movimento que leva o “bicho solto” Dadinho a se tornar o soberano Zé Pequeno é a própria comunidade Cidade de Deus. Não se trata somente de darwinismo social, bem como de uma concessão voluntária da comunidade. Para Boétie, suportamos a tirania; somos cúmplices das sandices, inconsequências e crueldades do tirano. No entanto, ele “não tem mais poder que o que lhe dão”; que, entre aqueles que estão subjugados ao seu poder, só pode haver mal “se eles preferirem tolerá-lo a contradizê-lo”. Além de sermos obrigados a “dobrar a cabeça sob o jugo”, não “por uma força que se imponha”, somos “por assim dizer fascinados pelo nome de um” que não deveríamos temer, “pois ele é um só, nem amar, pois é desumano e cruel com todos.”
Zé Pequeno dá provas cabais de seu pendor monárquico marginal: invade, corrompe, estupra e mata sem distinção e piedade inimigos e comparsas. Sua tirania é aquela da conquista pela força das armas; desse modo, trata a comunidade como sua “presa”, como refém, e só assim o temor se encrudesce e o amor se escraviza. Por quê se escraviza? Porque a comunidade naturaliza a servidão, habituando-se ao desumano. E desumano é subjugar-se; é aprender “a engolir sem achar amargo o veneno da servidão”; é viver sob o cabresto de alguém que humilha em nome da afirmação de poder. A liberdade é natural, mas o fascínio pela tirania e – ainda mais – pela intimidação causada pela força das armas leva toda a comunidade a aceitar o inaceitável.
Segundo Boétie o caminho para a tirania se divide em dois: a ascensão e a queda. A ascensão é promovida não pela imposição do tirano, mas por escolha da comunidade, do povo. As mãos que Zé Pequeno usa para disparar balas, os pés que usa pra pisotear o rosto de Mané Galinha são emprestados pela própria comunidade que, por permissividade, o colocou lá, enchendo-lhe de forças. Também a queda do “antro de tirania” é escolhida pelo poder popular ou pela própria engrenagem do crime, como fazem os “moleques da Caixa Baixa” ao darem o golpe em Zé Pequeno. De todo modo, nem ascensão nem queda da tirania nascem da liberdade, da natureza humana, mas do desvio desumano, da corrupção do uso comunitário do poder.