Arte Colunistas Jorge Xerxes Literatura

As cartas de Rilke

   

1n7r0 :: O Mestre Rainer Maria Rilke trocou correspondências com o Jovem Franz Xaver Kappus no período de fevereiro de 1903 até dezembro de 1908. Dez cartas de Rilke, endereçadas a Kappus, foram publicadas posteriormente – em junho de 1929 – resultando nesta Pequena-Grande Obra que trago hoje em Minhas Mãos – às vésperas do mês de agosto de 2018.

   

Trechos especialmente selecionados de cada uma dessas Dez Cartas de Rilke são apresentados nesta singela compilação. Entretanto, fica a minha forte recomendação quanto a leitura integral de “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Maria Rilke, 96p., Coleção L&PM POCKET PLUS, v.530, Porto Alegre, 2013.

   

c4r74 1 :: “Sua carta só me alcançou há poucos dias. Quero lhe agradecer por sua grande e amável confiança. Mas é só isso que posso fazer. Não posso entrar em considerações sobre a forma dos seus versos; pois me afasto de qualquer intenção crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados. As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.”

   

“O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda.”

   

c4r74 2 :: “Deve ter certeza de que sempre me alegrará com cada carta, só tem de ser indulgente em relação à resposta, que talvez venha a deixá-lo de mãos vazias. Pois, no fundo, e justamente quanto aos assuntos mais profundos e mais importantes, estamos indizivelmente sozinhos, de modo que muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez.”

   

c4r74 3 :: “Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranquilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.”

   

“Ser artista significa: não calcular, nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isto diariamente, aprendo em meio às dores às quais sou grato: a paciência é tudo!”

   

c4r74 4 :: “Pois mesmo os melhores erram nas palavras quando elas devem significar o que há de mais leve e quase indizível. Apesar disso, acredito que o senhor não precise ficar sem uma solução, caso se atenha as coisas que lhe são semelhantes, nas quais meus olhos descansam agora. Se o senhor se ativer à natureza, ao que há de mais simples nela, às pequenas coisas que quase não vemos e que, de maneira imprevista, podem se tornar grandes e incomensuráveis; se o senhor tiver esse amor pelo ínfimo e procurar com toda simplicidade conquistar como um servidor a confiança do que parece pobre – então tudo se tornará mais fácil, pleno e de algum modo reconciliador para o senhor, talvez não no campo do entendimento, que fica para trás, espantado, mas em sua consciência mais íntima, no campo da vigília e do saber.”

   

“A volúpia corporal é uma vivência dos sentidos, não difere do simples olhar ou da pura sensação de água na boca causada por uma fruta; ela é uma grande experiência, infinita, que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o brilho de todo saber. Não é ruim o fato de a aceitarmos; ruim é o fato de que quase todos abusam dessa experiência e a desperdiçam, usando-a como um estímulo nos momentos cansados de sua vida, como uma distração, em vez de uma concentração para alcançar pontos mais altos. Os homens converteram até mesmo o ato de comer em uma outra coisa: carência de um lado e excesso por outro obscureceram a clareza dessa necessidade; e igualmente obscurecidas se tornaram todas as necessidades profundas e simples nas quais a vida se renova.”

   

c4r74 5 :: “Chegamos a Roma faz mais ou menos seis semanas.”

   

“Águas infinitamente vivas correm nos antigos aquedutos para a grande cidade e dançam nas diversas praças sobre conchas brancas de pedra, jorram em pias amplas e espaçosas, rumorejam durante o dia e aumentam o seu murmúrio noite adentro, pela madrugada grandiosa e estrelada, com ventos suaves. Há por aqui jardins, alamedas e escadas inesquecíveis, escadas projetadas por Michelangelo, escadas construídas segundo o modelo das águas que escorrem por córregos – amplo declive em que um degrau gera o outro como uma onda sai da outra. Por meio de tais impressões, uma pessoa se recolhe, recupera-se da multidão pretensiosa que fala (como é expansiva!) e aprende devagar a reconhecer as poucas coisas em que perduram o que de eterno se pode amar e a solidão de que se pode tomar parte em silêncio.”

   

“Passarei ali todo o inverno, alegrando-me com uma grande quietude, da qual espero receber de presente horas boas e produtivas…”

   

c4r74 6 :: “Pense, meu caro, no mundo que o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser; pode ser lembrança da própria infância ou anseio do próprio futuro – apenas preste atenção no que surgir de dentro e eleve-o acima de tudo que o senhor percebe em torno. Se um acontecimento íntimo é digno de todo o seu amor, é nesse acontecimento que o senhor deve trabalhar de algum modo, sem perder muito tempo nem muito esforço para esclarecer sua posição em relação aos outros homens.”

   

“As crianças ainda são como o senhor era quando criança, igualmente tristes e igualmente felizes. Quando pensar em sua infância, viva de novo entre elas, de modo que os adultos não sejam nada e suas virtudes não tenham valor algum.”

   

“O senhor não percebe como tudo o que acontece é sempre de novo um começo?”

   

“Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos.”

   

c4r74 7 :: “Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a verdadeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar.”

   

“Um dia se encontrarão a menina e a mulher cujos nomes não significarão apenas uma oposição ao elemento masculino, mas algo de independente, algo que não fará pensar em complemento ou em limite, apenas na vida e na existência: o ser humano feminino.”

   

Tal progresso transformará profundamente a vivência do amor, agora cheia de equívocos, trará alterações profundas (a princípio contra a vontade dos homens ultrapassados), configurando uma relação de ser humano com ser humano, não mais de homem e mulher. E esse amor mais humano (que se realizará de modo infinitamente delicado e discreto, certo e claro, em laços atados e desatados) será semelhante àquele que nós preparamos, lutando com esforço, portanto ao amor que consiste na proteção mútua, na delimitação e saudação de duas solidões.”

   

c4r74 8 :: “Acredito que quase todas as nossas tristezas são momentos de tensão, que sentimos como uma paralisia porque não ouvimos ecoar a vida dos nossos sentimentos que se tornaram estranhos para nós. Isso porque estamos sozinhos com o estranho que entrou em nossa casa, porque tudo o que era confiável e habitual nos foi retirado por um instante, porque estamos no meio de uma transição, em um ponto no qual não podemos permanecer. É por isso que a tristeza também passa: o novo em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração.”

   

“Vários sinais indicam que o futuro entra em nós dessa maneira, para se transformar em nós muito antes de acontecer.”

   

“É necessário – e dessa maneira nos dá aos poucos a nossa evolução – que não experimentemos nada de estranho, mas apenas aquilo que nos pertence há muito tempo. Já foi preciso modificar tantos conceitos relativos ao movimento, e também se aprenderá gradativamente que vem de dentro dos homens aquilo que damos o nome de destino, não se trata de algo que entre neles partindo de fora.”

   

“Assim como, por muito tempo, os homens se enganaram a respeito do movimento do sol, eles ainda se enganam quanto ao movimento do porvir. O futuro permanece firme, caro senhor Kappus, mas nós nos movemos no espaço infinito.”

   

“No entanto é necessário que vivamos também isso. Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance; tudo, mesmo o inaudito, tem de ser possível nela. No fundo é esta a única coragem que se exige de nós: sermos corajosos diante do que é mais estranho, mais maravilhoso e inexplicável entre tudo com que nos deparamos.”

   

“Mas apenas quem está pronto para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a relação com uma outra pessoa como algo vivo e irá até o fundo de sua própria existência.”

   

Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los.”

   

c4r74 9 :: “É sempre o que eu já disse, sempre o desejo que o senhor descubra em si mesmo paciência o bastante para suportar e simplicidade o bastante para acreditar. Que o senhor ganhe mais e mais confiança para aquilo que é difícil, para a sua solidão em meio aos outros. De resto, deixe a vida acontecer. Acredite em mim: a vida tem razão em todos os casos.”

   

“Quanto aos sentimentos: são puros todos os sentimentos que o senhor acumula e eleva; impuro é o sentimento que abrange apenas um lado de seu ser e assim o desfigura. Tudo que o senhor pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo que faz do senhor mais do que foi até agora em suas melhores horas é correto. Toda a intensificação é boa, caso esteja em todo o seu sangue, caso não seja embriaguez, nem obscuridade, mas alegria da qual se enxerga o fundo. Entende o que quero dizer?”

   

c4r74 10 :: “O senhor deve saber, caro senhor Kappus, como estou alegre por ter em mãos esta sua bela carta. As notícias que me dá, reais e explícitas como são desta vez, parecem-me boas, e quanto mais considero o assunto, mais as percebo como sendo boas de fato.”

   

“Deve ser imenso o silêncio em que tais ruídos e movimentos têm lugar. E quando se pensa que a tudo isso ainda se acrescenta a presença do mar longínquo, ressoando talvez como o tom mais íntimo daquela harmonia pré-histórica, só se pode desejar ao senhor que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em sua pessoa a grandiosa solidão que não poderá mais ser riscada de sua vida.”

   

“O fato de nos encontrarmos em situações que trabalham em nós, que de tempos em tempos nos põem diante das grandes coisas da natureza, é tudo que se faz necessário.”

   

Taxa de Compressão = 6,5 páginas de excertos / 96 páginas do livro = 6,77 %

   

https://jorgexerxes.wordpress.com/

2019

   

Deixe uma resposta