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Uma  Fábula  Sobre  a  Realidade

Por Gilberto Silos

Certa vez, o Senhor dos Mundos apareceu ao Rei da Terra e lhe comunicou sua terrível decisão: dentro de 60 dias  um dilúvio eliminaria a vida da face do planeta. A humanidade chegara a um ponto insuportável de maldade e corrupção e não merecia continuar existindo. Porém, como uma  minoria não descambara para a imoralidade, fazia por merecer uma oportunidade de salvar-se. Isso só seria possível por meio da construção de uma arca, capaz de flutuar até que o nível das águas baixasse. O prazo de 60 dias era improrrogável.

O Rei da Terra, apavorado, convocou uma reunião ministerial para expor o problema. Era necessário construir  a arca com a máxima urgência.

Alguém  lembrou que numa floresta distante vivia um Velho que , por sinal, era o melhor construtor de arcas do reino. O Rei, então, determinou que fossem buscá-lo. Uma comitiva partiu para a longínqua floresta  e de forma arrogante e truculenta levaram-no à presença do Rei.

O Velho,  aquiesceu em construir a arca e  entregá-la dentro de 30 dias.  Cônscio de sua responsabilidade regressou à floresta e iniciou seu trabalho.

Tudo parecia caminhar bem, quando um dos ministros lembrou ao Rei que o Velho sendo muito velho talvez estivesse desatualizado e que seria importante assessorá-lo tecnologicamente. Com essa finalidade criaram a Proarca. Outro ministro sugeriu a criação da Tecnoarca, com o propósito  de pesquisar materiais e novas técnicas de construção de arca. O Rei, naturalmente, aprovou todas essas propostas de seus sábios ministros, acrescentando ainda que deveriam  contratar funcionários especializados para auxiliar o Velho. Para isso, criaram a Fuzarca.

O Velho, ao tomar conhecimento dessas decisões, à sua revelia, pediu demissão em caráter irrevogável, afirmando que construiria sua própria arca  e nela tentaria  salvar-se com sua família.

Os  ministros se regozijaram com a notícia e decidiram responsabilizar-se pela construção do artefato salvador. Criaram uma comissão para gerir o projeto, mas  todos queriam presidi-la. Não havendo consenso, pois eram muitos os interesses em jogo, o Rei teve de intervir e indicar o presidente, desagradando a maioria. Com isso já haviam se passado cerca de 30 dias.

O trabalho, que já caminhava a passos de tartaruga , sofreu uma paralização, quando uma notícia correu como uma bomba nos corredores do palácio. Na compra  de madeira para a arca, descobriu-se que o valor  fora superfaturado e um ministro levara uma propina. O Rei formou uma comissão para apurar o fato, com prazo de 15 dias para apresentar suas conclusões. Findo o tempo estabelecido,  concluiu-se  que houve um ligeiro engano, ou seja, num  involuntário erro de digitação colocaram um zero a mais no valor da nota. Só isso. Quanto à propina, não passava de intriga da oposição.

Como o tempo já se esgotava e nada da arca ficar pronta, o Rei da Terra, desesperado, procurou o Senhor dos Mundos, implorando que lhe desse um prazo maior. Muito contrariado, o Senhor dos Mundos lhe concedeu mais 20 dias, nem um dia a mais.

Nesse ínterim, mais um caso de corrupção atrasou os trabalhos. Um fornecedor de materiais, também superfaturados, ofereceu uma propina a ser dividida entre os ministros. Um deles transportou o dinheiro na cueca para  distribuí-la entre seus colegas de ministério. Como estava vivendo seu inferno astral, foi acometido de uma forte diarreia que acabou inutilizando a dinheirama. A informação vazou e com ela o escândalo. O ministro, para não ser punido, sugeriu que batizassem a arca com o nome  de Matriarca, homenageando a falecida mãe do Rei. Este não conteve as lágrimas de tanta emoção e tudo terminou em pizza.

Para agravar mais ainda a situação, um dos ministros, que se julgava um gênio, propôs a compra  de tampas de vaso sanitário de forma triangular nos banheiros da arca, alegando que o triângulo tem um significado cabalístico muito forte e  isso atrairia boas vibrações e sucesso à obra. Assim foi feito, porém, o material  teve de ser fabricado porque ninguém vendia algo semelhante. Novo atraso.

Com esses e outros contratempos, chegou o dia fatídico e a arca não  estava pronta.

Um dilúvio terrível desabava sobre a terra. O Rei e seus ministros já não sabiam mais o que fazer. Reunidos no último andar do palácio, já com água na altura do pescoço, avistaram algo  no horizonte. Era o Velho que lhes acenava, navegando tranquilamente em sua arca…arcaica.

P.S. Qualquer semelhança com a realidade é absolutamente surreal.

2018

 

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